quarta-feira, 20 de março de 2019

DUAS LÁGRIMAS FURTIVAS




Uma a escorregar timidamente pelo rosto abaixo dum colega meu, no seu leito de sofrimento, como resposta envergonhada ao meu não saber que lhe dizer, enquanto lhe punha a mão na testa: “Coragem. Deus está consigo!”. Foi certamente a última lágrima antes de entrar no sono misterioso da morte que ocorreria dois dias depois. O colega partiu para a Casa do PAI, mas a lágrima continua recolhida em mim. Como recolhida continua em mim aquela outra, também ela furtiva, daquela senhora no sacramento da reconciliação. Neste caso, era lágrima de alegria libertadora de quem sentia perdoada a sua história pessoal.

De vez em quando dialogo com estas duas lágrimas furtivas sobre se a melhor definição do homem é a de “animal racional” ou a de “animal que chora”. Os cães (por exemplo) também conseguem mostrar tristeza no seu olhar triste, como conseguem brincar de alegria saltando à nossa volta. Lágrimas, porém, nunca lhes vi. Por isso percebo o que de “graça” tem o “Dom das Lágrimas” concedido a alguns santos. É que a lágrima traz sempre consigo o coração onde nasce e de onde vem.

A caminho do Calvário umas santas mulheres de Jerusalém “choram” ao verem o estado lastimável em que vai Jesus de Nazaré com uma pesada cruz às costas; no Alto do Calvário, está Maria, sua Mãe, “junto à Cruz”. Está desfeita em lágrimas, mas está “de pé”, com o coração também ele bem “de pé”. Mulher Forte, gostamos de dizer. No horto onde José de Arimateia sepultara o Senhor deambula desvairada Maria de Magdala, também ela desfeita em lágrimas (“sem parar de chorar”, informa o evangelista João), em busca do “amado”. Chora porque não encontra o “tesouro” onde tem “o coração”. Sobre Jerusalém já, aliás, chorara o próprio Senhor Jesus ao ver os seus habitantes distraídos no mundo das futilidades e materialidades, não se apercebendo de Quem os estava a visitar.

Tinha razão o profeta Ezequiel quando séculos antes se deu conta que o problema do seu povo estava no coração, e que não chegava “imprimir” nele a Lei dada por meio de Moisés, como julgava o profeta Jeremias. Que adiantava imprimir a Lei num coração “de pedra”? Por isso, pede ao Senhor que lhe arranque aquele coração e em seu lugar coloque um “de carne” que sinta, que “chore”, que tenha compaixão (“Tenho compaixão da multidão”, dirá Cristo), que “se aproxime” (Parábola do Samaritano), que “acolha” publicanos e mulheres de má vida e que “abrace” (Parábola do Filho Pródigo) com o calor do Pai e de Pai.

Este é o “Coração” de Jesus que anda por aí nos caminhos dos homens com os pobres, os aleijados, os nus, os cegos e os desvalidos de toda a ordem com quem se identifica, com quem chora, e de quem tem pena “por andarem como ovelhas sem pastor”.

Quaresma é muito mais que Tempo litúrgico e cumprimento dumas certas práticas de jejum e penitência. É até muito mais (ouso pensar) que um mudar de caminhos e de vida (conversão). É sobretudo um assunto de “coração” onde, por vezes, as “lágrimas” do arrependimento e as lágrimas da reconciliação acontecem como Graça e Dom. Graça a pedir e Dom a agradecer, enquanto andarmos caminhando neste “Vale de Lágrimas”, como diz o nosso povo. E o povo sabe muito bem do que fala.

“Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-Me”, diz o Senhor. Mas leve o coração, acrescentaria eu. Porque vai precisar de chorar e derramar lágrimas. Umas dolorosas, outras profundamente libertadoras. Porque a vida não acaba na cruz. Vai muito, muito para além dela. Felizmente!

A. da Costa Silva, s.j.

Apostolado da Oração

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