
“Tendo despedido a multidão, subiu sozinho a um monte para orar.” (Mt 14, 23)
‘Despediu-os’. Ouvir isso nos dias que correm causa espanto e consternação, sobretudo se os despedidos forem pessoas que nos são queridas. Isto deve-se ao peso negativo que atribuímos a despedir, no contexto de uma sociedade com uma economia instável, na qual a desvalorização das pessoas mergulha-as numa vida cuja qualidade deteriora-se progressivamente.
Contudo, o significado do verbo ‘despedir’ tem muito mais alcance. Basta pensar que neste episódio relatado em Mateus, Jesus despede a multidão depois de ter multiplicado os pães e peixes para alimentá-la. Uma atitude bem contrária ao ato laboral de prescindir dos serviços de alguém. Assim despedir em ‘jesuano’ significa enviar depois de ter acolhido. É entregar aDeus a pessoa que parte. É aquele momento agridoce que conduz à saudade. Em francês dizemos “au revoir” quando nos despedimos. Existe nessa expressão um alento: despedimo-nos até nos voltamos a ver. Mesmo na ausência, a presença do outro fica apenas adiada. Similarmente a ‘saudade’ é o reconhecer que a porta se fecha e a distância física aumenta, a tristeza pode até bater à porta com mais ou menos regularidade, mas o que guardamos são todos os momentos felizes, a alegria que partilhámos quando estivemos juntos. Como é preciosa a linguagem que nos permite estar em relação com os outros.
Ora na semana passada quem se despediu fui eu. Despedi-me dos alunos, educadores, do colégio e muito provavelmente do ensino. Despedi-me sem ter sido despedida. Despedi-me sabendo que fui tão bem recebida. Despedi-me ciente de que deixo uma parte de mim para trás, como exprime maravilhosamente Saint Exupéry no Principezinho: “aqueles que passam por nós não vão sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”. Despedi-me esperando que tenha sabido dar mais do que recebi, mas sei que recebi muito de todos. Os anos passados no colégio fortaleceram-me, ajudaram-me a crescer profissional e pessoalmente e redobraram a minha esperança.
Nos olhos curiosos e bondosos dos mais novos, vi a possibilidade de vir a conhecer, graças a eles, um mundo melhor, quem sabe mais generoso, mais tolerante e com menos ódio no coração. Talvez seja exatamente graças a esses olhares esperançosos, aos sorrisos doces e rasgados de alegria e a tantos gestos afetuosos de carinho e de consolo que tenho hoje coragem de partir. No meu coração estão gravados os abraços que recebi de antigas alunas no dia do aniversário da morte do meu pai, as mensagens, os desenhos no quadro, os abraços de despedida e até as lágrimas que alguns derramaram ao ver-me chorar… Entrei quebrada e insegura, mas todo o amor que ali recebi e tudo o que ali vivi devolveu-me a tua paz e a confiança de saber que chegou a hora de ser ‘livre para servir’ noutro lugar.
Vou, mas não sacudo o pó das minhas sandálias (cf. Lc 9, 5), pelo contrário, abençoo e agradeço o tempo que ali passei. A ti entrego os que ali conheci, dos mais novos aos ‘jovens há mais tempo’. Perguntarão talvez porque vou embora de um lugar que tanto me marcou. Vou porque em boa hora compreendi que quando há dor no partir, maior é a vontade de voltar. Compreendi que testemunhar-te é saber sair da nossa bolha de conforto para dar-te a conhecer em lugares onde foste esquecido. Tu ensinaste-nos que “não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos” (Mc 2, 17) e consequentemente quem escolhe seguir-te acolhe os teus ensinamentos e aceita os teus envios.
Vou, recupero o meu nome de batismo, não mais serei ‘stôra’, ‘miss’, ‘teacher’ ou ‘madame’, mas ficará sempre a tão portuguesa saudade.
Raquel Dias
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