Cidade do Vaticano (RV) - "Onde está o teu irmão?, perguntou o Senhor a Caim". A frase do Livro do Gênesis pronunciada pelo Papa Francisco em Lampedusa em julho de 2013, na sua primeira viagem em território italiano, revelou aquilo que já se desenhava em seu pontificado, iniciado poucos meses antes: a preocupação com os pobres e um chamado à solidariedade diante do individualismo crescente e das estruturas injustas
Quem acompanha o pontificado do Papa Bergoglio, acaba se familiarizando com certas expressões - algumas cunhadas por ele próprio, como "globalização da indiferença", "periferias existenciais" - e também com algumas passagens bíblicas que marcam e inspiram seus pronunciamentos. Destas, poderíamos destacar três: a citada no início do texto, do diálogo do Senhor com Caim, o Bom Samaritano e o "protocolo com o qual seremos julgados", ou seja, Mateus 25, 34-40. Estas três passagens aparecem indistintamente quer nas homilias da Casa Santa Marta, ou na Basílica Vaticana, quer nos pronunciamentos à autoridades, encontros com religiosos e com a sociedade civil. Em comum elas apresentam, por um lado, situações de abandono, de desamparo, de marginalização, de pobreza e, por outro, a solidariedade - ou a falta dela - para com as vítimas destas situações.
"Pobres tereis sempre convosco", disse Jesus, o que pressupõe que todas estas situações não representam algo novo, talvez o sejam na forma e contexto, mas possuem a data da idade do homem sobre a terra - ao menos após a queda pelo pecado original. Tampouco Francisco foi o primeiro a falar sobre os pobres, nem na Igreja, nem fora dela. Pobres, pobreza, solidariedade, isto tudo está nos Evangelhos desde o início do cristianismo. O nome escolhido por Bergoglio, não esqueçamos no entanto, está ligado ao Pobre de Assis. E o que Francisco faz em seu pontificado, nada mais é do que salientar a questão da pobreza e das injustiças, clamando por uma mudança individual, nas estruturas e nas situações de injustiça, que levam a vida a se tornar "insuportável para muitos", como afirmou no discurso aos Movimentos Populares em Santa Cruz de la Sierra: "Queremos uma mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade mais próxima; mas uma mudança que toque também o mundo inteiro, porque hoje a interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir esta globalização da exclusão e da indiferença".
A justa distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera filantropia, afirmou o Papa na mesma ocasião, é um dever moral. E para os cristãos, alertou, o encargo é ainda mais forte: é um mandamento. Trata-se de devolver aos pobres e às pessoas o que lhes pertence. O destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina social da Igreja.
Um aspecto fundamental na promoção dos pobres - afirmou Francisco por sua vez, num dos seus mais contundentes discursos pronunciados no Paraguai - é o modo como nós os vemos. "Não serve uma visão ideológica, que acaba por usar os pobres a serviço de outros interesses políticos ou pessoais. As ideologias terminam mal, não servem. As ideologias tem uma relação ou incompleta ou doente ou ruim com o povo. As ideologias não assumem o povo. Por isto, olhem para o século passado. Em que terminaram as ideologias? Em ditaduras, sempre, sempre. Pensam pelo povo, não deixam o povo pensar". Longe das ideologias, Francisco exorta a se colocar a economia a serviço do homem, a uma valorização da pessoa na sua própria bondade, a uma preocupação genuína por ela. Algo que pressupõe também uma disposição em aprender dos pobres, aprender deles. "Os pobres - disse o Papa - têm muito para nos ensinar em humanidade, bondade, sacrifício, em solidariedade. Nós, cristãos, além do mais, temos outro motivo, e maior, para amar e servir os pobres, pois neles, temos o rosto, vemos o rosto e carne de Cristo, que Se fez pobre para nos enriquecer com a sua pobreza, os pobres são a carne de Cristo".
"O pobre - recorda-nos o Santo Padre - é alguém como eu e, se está passando por um momento ruim, por milhares de motivos – econômicos, políticos sociais ou pessoais – eu poderia estar naquele lugar e poderia estar desejando que alguém me ajudasse. E além de desejar que alguém me ajudasse, se estou naquele lugar, tenho o direito de ser respeitado. Respeitar o pobre". E este colocar-se no lugar do outro, leva ao entendimento da situação vivida por ele. Também neste sentido, o apelo à nossa ação dentro do "protocolo pelo qual seremos julgados": "Tive fome, e me deste de comer, tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber, era peregrino e me acolheste, nu e me vestiste, enfermo e me visitaste, estava na prisão e vieste a mim".
O que Francisco pede, é uma paz inquieta, uma fé revolucionária capaz de mudar as mentalidades, e por consequência, mudar as estruturas injustas. Para contrastar a "globalização da indiferença", Francisco quer despertar o mundo para a mesma solidariedade que teve o Bom Samaritano ao se deter no meio do caminho para auxiliar a pessoa jogada na beira da estrada. Francisco chama a atenção para uma mudança de atitude, de um individualismo cego para uma cultura que "tenha a percepção da existência do outro", este "perceber que existe alguém à beira do caminho, perceber que tem alguém ao meu lado", e que talvez tenha necessidade de um olhar, de um sorriso, de uma mão estendida, de um pedaço de pão, de um mínimo de incentivo para ser elevado a uma dignidade perdida ou talvez nunca existida.
Diante da complexidade e dimensão dos problemas, somos tomados por uma sensação de impotência, "mas lamentar-se, não resolve nada", disse Francisco no Angelus do último domingo. "O que podemos, "é oferecer aquele pouco que temos" e “certamente temos algumas horas de tempo, algum talento, alguma competência... Quem de nós não tem os seus “cinco pães e dois peixes”? Se estamos dispostos a colocá-los nas mãos do Senhor, serão suficientes para que no mundo haja um pouco mais de amor, de paz, de justiça e, sobretudo, de alegria. Deus é capaz de multiplicar os nossos pequenos gestos de solidariedade e tornar-nos partícipes do seu dom”. “Caim, onde está o teu irmão?”
(Jackson Erpen)
http://br.radiovaticana.va/news/2015/08/01/editorial
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