segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

«Cada um de nós é personagem do presépio» – D. José Tolentino Mendonça


A Ecclesia conversa com o cardeal D. José Tolentino Mendonça, arquivista e bibliotecário do Vaticano, sobre o significado do Natal, a sua força transformadora e a inspiração do Papa Francisco, que acompanha de perto na Cúria Romana.
Entrevista conduzida por Paulo Rocha

Agência ECCLESIA – Começamos com um simbolismo, a partilha da Luz da Paz de Belém. É uma iniciativa que começou, precisamente, na gruta de Belém, e que chega até nós através do Corpo Nacional de Escutas, em todas as dioceses de Portugal. Neste tema temos o centro do dia de Natal, do acontecimento do presépio: a luz.

Cardeal José Tolentino Mendonça (JTM) – Para dizer a nossa, o que há de mais profundo em nós, na nossa humanidade, há só uma linguagem que é capaz de ser relevante, de tocar mesmo no fundo: é a linguagem dos símbolos. Um símbolo vale por mil palavras. Este gesto de partilhar uma luz que veio de tão longe, do lugar onde o próprio Jesus nasceu, é alguma coisa que as palavras não dizem, e é este propagar, no fundo, de uma mensagem, de uma palavra de esperança – de uma luz que se acende na noite, tantas vezes, das nossas vidas, dos nossos corações, dos nossos dilemas -, que o Natal quer representar.



AE – O Papa Francisco, no encontro de Natal com a Cúria Romana, falou desta luz que chega aos locais de escuridão do nosso mundo.

JTM – Jesus vem para isso. Jesus vem, não para o mundo idealizado, mas para o mundo real. Para o mundo concreto, cheio de feridas, de divisões, de coisas por tratar, de mudanças a inscrever. Nesse sentido, Ele é uma luz – seguindo a tradição bíblica, o profeta Isaías, que dizia: o povo que andava nas trevas viu uma grande luz.

No fundo, a proposta do Natal é essa visão de uma luz, uma luz nova que nos reaproxima uns dos outros, do sentido das nossas vidas.



AE – O Papa dizia que o presépio, o Natal, ajuda a responder às questões últimas. Aliás, um tema retomado pelo cardeal Tolentino no seu artigo semanal…

JTM – O Papa, neste Advento, escreveu a todos os cristãos uma mensagem sobre o presépio, com uma grande transparência. Uma mensagem simples e, ao mesmo tempo, a dizer com grande eficácia o essencial. E uma das coisas que ele diz, na tradição de São Francisco, que foi o autor do primeiro presépio, é que cada um de nós é personagem do presépio. O presépio não é um teatro, a que nós assistimos, é uma história na qual nós participamos como autores.

Por isso, mesmo se no dia de Natal, já sentimos o cansaço ou sentimos toda a fadiga de um grande tempo de preparação e de emoção, de convívio, que vivemos, e, se porventura, assoma ao nosso coração a pergunta “o que é que fica de tudo isto que passa?”, é importante que fique uma luz. É importante que fique a certeza de que somos amados, a certeza de que este Deus que vem à nossa vida é capaz de entender a mulher e o homem que nós somos, é capaz de nos abraçar na nossa realidade mais viva e, ao mesmo tempo, é capaz de semear em nós um sentido, uma promessa, que diz: o verdadeiro Natal não passa. O dia 25 não é o término, é um ponto de começo, de relançamento da nossa vida.

AE – Uma das coisas que escreveu é que “o Natal não é ornamento, é fermento”.

JTM – O grande risco, no fundo, no Natal, é que todo o mundo simbólico – muito vivo, muito tilintante, muito feérico – acabe por esgotar tudo. De certo modo, tudo fica numa mesa bem composta, nuns cozinhados excelentes, nos presentes que trocamos, nas luzes que se acendem, e o essencial do Natal passa ao lado. Por isso é importante dizer que o Natal não é ornamento, mas é fermento. Não é em vão que nós vivemos este Natal.

É verdade que já vivemos muitos, mas cada Natal é, de facto, uma oportunidade, e deixa-nos uma graça, na nossa vida. Falando a todos aqueles que trabalham no Vaticano, o Santo Padre falava no sorriso: Deus, em Jesus, veio acender um sorriso no fundo da nossa alma. E é importante isso, essa alusão à alegria.

Há uma alegria que não se esgota, uma alegria que não se vai embora com o pôr-de-sol deste dia 25. E é essa cintilação de esperança a coisa mais importante.




Foto Agência ECCLESIA/TAM

AE – E é preciso ser audaz, para ir atrás dessa alegria, dessa luz?

JTM – Esse é o grande desafio, da nossa vida: o que fazer? Deus veio ao nosso encontro, a proposta de Jesus, este Deus frágil, que nos é dado, este Deus que se torna dom é acolhido. E depois, o que fazer com isso?

O Natal é um programa, é um programa de vida. Um grande poeta contemporâneo dizia que nós nunca nascemos o suficiente. Mesmo numa idade adulta, avançada, distantes do dia do nosso nascimento, a verdade é que o ato de nascer é um ato para conjugar de muitas maneiras, ao longo da nossa vida. Um nascimento nunca é suficiente e há um parto, a nossa humanidade pode ser descrita como um parto. Nós precisamos de nascer.

O que Deus nos ensina no presépio é a audácia de nascer, a audácia de nascer mesmo na fragilidade, na nudez, na precariedade, no não-preparado, na vida como ela é, mas com a capacidade de florescer. No fundo, a capacidade de ser. O programa de vida que o Natal nos deixa é, de facto, essa capacidade de sermos em plenitude.



AE – Corremos o risco de não chegar até aí, em cada Natal, se nos fixarmos nas questões penúltimas e não nas últimas, como referia?

JTM – As questões penúltimas têm o seu sabor, o seu sentido.



AE – Mas são as tais da cintilância do momento…

JTM – As penúltimas são o caminho para chegar às últimas. O que é importante é sentirmos que as coisas não acabam aqui, que a minha relação com o Deus-Menino, por exemplo, não acaba quando eu construo o presépio. Ou que a minha relação com os familiares não acaba quando nos levantamos da mesa de Nata. Ou que a minha relação comigo mesmo, com a busca de Deus, não acaba porque fui à Missa do Galo ou fui à Missa no dia 25. Há uma continuidade.

O Natal é um dom que nos é oferecido, é uma luz que se acende. A grande pergunta é: o que é que eu vou iluminar com esta luz? Por que é que esta luz se acendeu? O que é que eu posso fazer? Essa é, no fundo, a verdadeira pergunta natalícia.



AE – Na sua carta ‘Sinal Admirável’, sobre o presépio, o Papa diz que no rosto do Menino Jesus estão todos aqueles que não têm lugar em tantas hospedarias da atualidade, como Ele não teve na altura. O presépio é inclusivo?

JTM – Este tempo é um tempo de grande fraternidade humana, porque nós percebemos que o enredo do Natal é um enredo dramático: a história de dois que descem, um jovem casal, que desce da sua terra, que está deslocado do seu lugar de origem, que chega e não tem casa, tendo de viver no desabrigo um dos momentos mais intensos da sua vida, que é dar à luz o filho que Maria traz no seu seio. São condições de um dramatismo humano que a todos nos toca e que nos deveria servir de modelo para a relação que queremos instaurar com os nossos semelhantes, sobretudo com os mais pobres, que aqueles que literalmente melhor se identificam com a fragilidade das figuras do presépio. Neste sentido, o Natal é uma escola de inclusão, é uma escolha de acolhimento, porque nos reúne todos em volta do essencial, que é a vida. É a vida.

As nossas sociedades não podem esquecer que o valor primeiro é a vida, estarmos vivos é o primado. Em volta da vida, nós devemos ajoelhar-nos, oferecer os nossos dons, sentir a grande alegria. Porque se deixamos de sentir alegria, quer dizer que um apagamento aconteceu dentro de nós, que deixamos de ter a capacidade de espanto, de fraternidade e de acolhimento.



AE – Ainda seguindo o Papa Francisco, os pobres, os marginalizados são os que se aproximam mais deste mistério da Encarnação e nos ajudam nessa aproximação?

JTM – Os pobres transportam o vazio, a necessidade, a disponibilidade. Os pobres têm um olhar inocente, porque precisam, porque dependem. E isto é uma atitude espiritual de que todos nós precisamos, porque às vezes somos cristãos de barriga cheia, que vivem muito a partir do seu conformismo, da sua tradição, do seu deixa andar, mas verdadeiramente não é uma questão vital, da qual dependa a nossa existência. E os pobres ensinam-nos isso. Na linha de toda a tradição bíblica, de toda a revelação de Deus, do que Jesus nos diz, o dom que é recebido é para ser partilhado: Recebestes de graça, dai de graça.

A pergunta primeira que Deus faz a Caim é a pergunta é a pergunta que Deus faz a cada homem, a cada mulher: onde está o teu irmão? Esta responsabilidade de uns pelos outros é um património inalienável. Nós não podemos fazer de conta que esta pergunta não nos é feita.



AE – Há outro tema muito caro, que é também de Natal, ao Papa Francisco: o tema da ternura de Deus, que se conjuga neste ambiente do presépio, no ambiente familiar, nesta quadra…

JTM – Isso é extraordinário, porque às vezes uma das nossas pedras de tropeço são as representações de Deus. Sobretudo as internas, que se instalaram dentro de nós. Muitas vezes, temos a ideia de um Deus juiz, castigador, indiferente, mas o Deus do presépio – este Deus feito Menino, este Deus que abre os braços para nós, este Deus que se dá a conhecer na nudez e na fragilidade, este Deus que é pobre – é purificador das imagens de Deus que são uma ameaça à nossa fé. O Deus do presépio, cuja imagem nós precisamos de interiorizar e de aprender, é um sustento para a nossa fé, porque Deus é como o Menino do presépio.



AE – Pedia-lhe para comentar representações que circulam pelas redes sociais, sobre o Natal: a primeira mostra metade de uma coroa de Natal e outra metade da coroa de espinhos, referindo que o Natal é o nosso ambiente, nestes dias, mas a razão é a ressurreição de Jesus Cristo.

JTM – O mistério da vida de Jesus e o mistério da nossa própria vida tem de ser olhado na globalidade. A coroa de Natal não nos pode fazer esquecer a vida, o Natal não é uma alienação, o Natal é uma imersão festiva no sentido mais global da nossa vida, onde cabe tudo. A nossa vida é esse caminho completo. Por isso, no Natal é importante não esquecermos o sofrimento, o quinhão de sofrimento humano, e sobretudo não esquecermos que este dom é uma grande responsabilidade, que temos de assumir com todas as consequências que a ela estão inerentes.



AE – Muito para além deste dia 25 e desta quadra…

JTM – O dia 25 é um começo, um momento de que também precisamos, porque somos seres feitos para a festa, para a alegria. O Natal é o dia da festa.



AE – Na Madeira é precisamente a Festa.

JTM – Sim, é assim que nós madeirenses chamamos ao Natal: a Festa. Mas a encarnação de Deus, que se faz Deus connosco, é o grande presente, é a grande luz que se acende.



AE – Outra representação é aquela em que as figuras do presépio estão cada uma na sua “jaula”, presas, separadas umas das outras, na fronteira. É a construção do mundo que traz essa ameaça, infelizmente cada vez mais real?

JTM – O tempo de Natal é um tempo de reflexão. Podemos gostar ou não das imagens, das propostas, mas mesmo imagens que possam chocar um pouco ajudam-nos a não passar este tempo só na celebração. É preciso ter também um tempo de reflexão sobre o que significa o Natal, em que contexto de mundo celebramos este Natal de 2019.

O Natal é, de facto, uma chama que ilumina a noite do mundo e é importante que tomemos consciência do mundo em que vivemos e daquilo que o Natal nos implica a fazer, de compromisso, de encontro, de ação transformadora.



AE – Como é a vivência de Natal no seu novo ambiente, na Cúria Romana, a partir do encontro anual com o Papa (22 de dezembro, em 2019)?

JTM – É um momento sempre muito importante, porque é o discurso anual que o Papa faz aos seus colaboradores mais próximos, na Santa Sé. Para lá da beleza do encontro, em si, e do estarmos uns com os outros, o Papa Francisco faz sempre um discurso programático. Parte-se do Natal para pensar na vida.

Este ano, o Santo Padre quis pré-anunciar a reforma da Cúria, chamando-nos a uma atitude que foge à rigidez. Às vezes, as estruturas e as instituições têm essa tentação, de se tornarem rígidas e autorreferenciais; ora, é preciso abrir-se à novidade do Evangelho e às exigências, aos novos desafios do Evangelho.

Pré-anunciando a concretização da reforma da Cúria, o Santo Padre quer ajudar-nos a todos a ter uma atitude certa: uma atitude de acolhimento, como no Natal somos chamados a acolher o Menino que nasce.



AE – Uma das afirmações do Papa foi “já não estamos no tempo da Cristandade”. É uma afirmação que a Cúria Romana ainda precisa de ouvir, para essa renovação?

JTM – O mundo mudou muito, tornou-se muito plural, muito diversificado. O lugar do Cristianismo no mundo, o lugar da Igreja, tem um formato completamente diferente do que era há alguns séculos, num regime de Cristandade. A interpretação deste tempo e dos sinais dos tempos, do caminho a seguir, é uma coisa muito exigente, porque nos pede a todos uma desinstalação muito grande e uma capacidade de arriscar novos caminhos, novas linguagens, novas propostas, vivendo uma simplificação maior dos nossos meios, das nossas estruturas, para privilegiar as dimensões da evangelização e do encontro. Isso, como diz o Santo Padre, é uma conversão.

Esta conversão, no entanto, não é só vivida ao nível da Cúria Romana; esta conversão é vivida ao nível das dioceses, das paroquias, dos grupos, das comunidades mais celulares, porque este chamamento a uma renovação, digamos, para poder servir melhor a missão da Igreja é um chamamento que toca verdadeiramente a todos.



AE – O Papa falou em diversos setores, entre eles o Dicastério da Comunicação, apelando a um modo de trabalhar diferente, em sinergia. É um novo paradigma de funcionar, para servir?

JTM – É muito importante e a Comunicação Social é um mundo onde as mudanças aceleradas aconteceram, transformando tudo aquilo que nós conhecíamos, dos formatos: eu ainda sou da geração que todos os dias lia o jornal e esperava pelo jornal em papel. Ele continua, mas hoje as primeiras notícias do dia, se calhar, não nos chegam através desse formato.

É preciso adequar-se. Há uma palavra italiana que o Concílio Vaticano II cunhou, e que é muito repetida na Igreja: o aggiornamento. Colocar em dia os nossos processos. Isso só se faz com a capacidade de trabalhar em equipa, de trabalhar conjuntamente.

O Natal é o contrário da “lógica das capelinhas” – “eu tenho o meu pequeno reino, o meu pequeno mundo, aqui sou um rei, mando, controlo”. É preciso passar desta lógica individualista e fragmentária para uma capacidade de estar, de fazer um processo conjunto, alimentar um projeto único. Penso que é um grande desafio para a Igreja, a todos os níveis, porque a Cúria Romana não é diferente da nossa paróquia: tem a mesma grandeza e os mesmos limites.

Com naturalidade, com simplicidade, é este o grande apelo que o Santo Padre nos faz: o viver comunitário, o trabalho comum.



AE – Que sinal foi a mudança de designação de Arquivo Secreto para Arquivo Apostólico do Vaticano?

JTM – Foi uma aggiornamento, um colocar em dia a designação, porque se é verdade que a palavra “secreto” vem do latim – tem a mesma origem da palavra “secretaria”, que é o lugar onde cada um de nós se senta – e quer dizer privado, porque é o arquivo do Papa e nas Nunciaturas, que no fundo se correspondem com o Santo Padre, a verdade é que a palavra “secreto”, hoje, é um termo muito ambíguo, que precisa sempre de ser explicado, mas que não desfaz nunca uma certa carga de coisa escondida, de coisa que se quer manter às escuras. Ora, um arquivo é um lugar de estudo, é um lugar onde o encontro com a História se realiza, de uma forma normal, porque são os documentos a falar.

Nesse sentido, a melhor designação hoje, de facto, é Arquivo Apostólico Vaticano, como a Biblioteca. Tem a ver com a missão de Pedro.



AE – Nesta conversa sobre o Natal e o ambiente onde vive atualmente, olhamos também para o impacto que tudo isto tem em Portugal. Foi personalidade do ano, para o ‘Expresso’, recebeu a Medalha de Mérito da Região Autónoma da Madeira. Como é que acolhe esta repercussão do seu percurso de vida?

JTM – Acolho-a com muita humildade e respeito pelo sentimento dos outros, embora me sinta sempre muito pequeno, diante do amor, do carinho com que todos me abraçam. Quero agradecer muito.

O único valor, para mim, que vejo nessas homenagens, não é certamente um valor pessoal – porque tenho o sentido profundo da minha pequenez, de como tantas outras pessoas têm um papel, um valor, um mérito muito superior ao meu -, mas o que me faz aceitar e sorrir a todos é a oportunidade de que esses momentos sirvam para trazer, para o espaço público, determinadas temáticas, falar de assuntos, trazer uma mensagem que normalmente não está tão presente no dia a dia das conversas e escolhas.



AE – São momentos que ajudam a manter a ligação com a sua terra natal?

JTM – Essa raiz existe e existirá sempre. Não é impunemente que se é português ou que se nasce num lugar, porque é a nossa matriz cultural, que é um património de futuro, não apenas de passado. Mas é sempre muito belo voltar a Portugal



AE – Vai ser o presidente das próximas comemorações do 10 de Junho, na Madeira. Que oportunidade vai ser essa para colocar alguns temas, no debate público?

JTM – Agradeço muito ao senhor presidente da República o convite que me fez, ainda antes de ser cardeal, para o fazer, como cidadão – porque é nessa condição e é uma bela tradição da nossa República, chamar um cidadão para falar no Dia de Portugal. É como cidadão português, mais um, que nesse dia falarei em nome dos portugueses. Espero que o discurso possa contribuir, humildemente, para o debate e para as preocupações da nossa comunidade nacional.


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