sexta-feira, 3 de julho de 2020

Ainda não perdeste tudo!





Esta crónica é para os sentem que perderam tudo. Para os que sentem que ficaram sem chão. Para os que têm medo de sair de casa e de engolir um vírus sem se dar conta. Para os que viram a sua vida dar uma reviravolta e que sentiram que andaram dez passos para trás.
Este texto e estas palavras são para os que não podem visitar os seus pais. Mães. Avós. Primos. Tios. Sobrinhos. Irmãos. Amigos. Para os que se despediram de alguém que lhes era querido e que sentiram que o chão lhes foi sugado de debaixo dos pés.
Esta crónica é para os que aproveitaram este tempo para perdoar feridas antigas. Para os que estão, ainda, a tentar fazê-lo. Para os que julgam não ser capazes de o fazer.
Para os que não puderam olhar para os dois lados da estrada antes de atravessar o caos de um hospital. Para os que cuidam dos doentes, sabendo o quanto se arriscam. Para os que visitam os doentes, sabendo o quanto se arriscam. Para os que seguram na mão dos que estão de partida deste mundo e lhes dizem: podes ir. Está tudo bem.
Para os que choram todos os dias. Para os que choram às vezes. Para os que ainda não conseguiram chorar. Para os que riem para não chorar. Para os que continuam a chorar de tanto rir com as coisas mais disparatadas e mais parvas.
Para os que se adaptaram ao mundo dos encontros e das reuniões virtuais e souberam fingir, ao espelho, que estava tudo bem. Para os que não se adaptaram e para os que não souberam (nem sabem) fingir.
Para os que estão cansados. Para os que estão animados. Para os que estão desesperados. Para os que se sentem capazes de soprar alegria a todos quantos se cruzam consigo. Para os que têm sempre uma palavra de conforto. Para os que não dizem nada. Para os que sentem tudo. Para os que não sabem o que estão a sentir. 
Para os que estão a saber lidar com tudo isto. Para os que não sabem lidar com coisa alguma.
Este texto é para nós. Para mim. Para ti. Para todos.
Não te preocupes: ainda não perdemos tudo. Ainda estamos aqui para ver a onda de frente. Ainda temos tanto à nossa espera depois de atravessar esta onda gigante. Ainda há tanto por dizer. Por fazer. Por celebrar e por viver.
A onda é enorme. Os dias passam e parece-nos cada vez maior. E nós cada vez mais pequenos.
Como é que se passa por cima disto? Como é que se avança? Mergulhamos ou fugimos para onde temos pé?
Não sabemos nada. Mas enquanto dermos e apertarmos as mãos, ainda não perdemos tudo.

Marta Arrais


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