quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Morrer e ressuscitar

 



O grande desafio que se nos coloca todos os dias é o de dar sentido à vida. Somos seres vivos que sabemos da nossa morte e que, precisamente por isso, valorizamos e afirmamos o facto e o valor de viver.

Viver e ser ameaçado pela presença da morte não é, contudo, uma consciência apenas ocasional. É o tecido da própria vida. A consciência da sua origem (de onde), da sua vocação (para onde), da sua capacidade para a transcendência (o projecto, o outro e o Outro), da necessidade da felicidade (a ânsia da harmonia), da fragilidade e da finitude (os limites), da morte não são, por isso, apenas fases da vida. São a sua própria densidade.

Quando pensamos em vida, pensamos em realidade dinâmica, multi-facetada, não asséptica, não estática, que é passível de avanços e recuos e na qual se experimentam imensas tensões e contradições, mas que possui uma unidade interior. A vida não se resume a um conjunto de acasos; e o seu sentido não se define em relação a neutralidades, mas sim em relação a valores acolhidos e afirmados em liberdade. Dela fazem parte a memória, o amor e a esperança como definidores de sentido.

A alegria e o sofrimento surgem assim contextualizados na própria vida. Não são apenas algo que em alguns momentos se junta (justapõe) à vida, mas são a própria vida a acontecer. O homem não tem vida, é vida. A vida é o viver e é viver.

A tendência de olhar para alegria apenas como o que é motivado pelo que de bom nos acontece e de perspectivar o sofrimento pelo que de mau se nos depara, é imensamente redutora da pessoa humana. Como e em relação a quê definimos o que é bom e o que é mau? Apenas em relação ao imediato projecto pessoal da consciência de cada um (o apetecer ou gostar)?

Então a alegria seria sempre a concretização daquilo que cada um quer e da forma que quer, e o sofrimento seria sempre a incapacidade ou impossibilidade de fazer o que se quer e da forma que se gosta. Não ficaríamos demasiado reduzidos? Não passaríamos rapidamente de indivíduos a individualistas!? É que não é a mesma coisa. Se tudo fosse … quando houvesse resistência não haveria alegria e quando houvesse alegria nada nem ninguém nos poderia resistir. Mas, evidência, a realidade resiste-nos. E nós resistimos à realidade.

Alegria e sofrimento são faces da mesma realidade porque têm que ver com a tensão e a densidade do viver. Não somos perfeitos, não somos plenos, mas somos perfectíveis, podemos atingir plenitudes. Estamos a caminho na história e dentro de nós. É a nossa dinâmica. E, vendo bem as coisas, só há liberdade quando se exercita o discernimento e existem opções.

Se a nossa vida se pode comparar a uma caminhada, então não se avança para o amanhã se não se morrer ao hoje, constantemente. O sofrimento conduzirá à alegria e a alegria, para ser cada vez mais plena, passará pelo sofrimento. Haverá, evidentemente, muitas formas de sofrimento como também muitas formas de alegria. Mas é sempre assim que a liberdade humana se re-ordena e é assim que acontece a transformação da vida. A busca do sentido gera sofrimento porque é tensão entre o que se é (ou ainda não se é) e o que se pode vir a ser (que ainda não se possui). Mas essa busca, porque é de sentido, porque é de crescimento, gera sempre alegria porque está cada vez mais perto de plenitudes, sementes de verdade.

No horizonte da nossa fé cristã, alegria e sofrimento dão corpo à experiência do dinamismo pascal. É pela morte que se vai à vida. Não se ressuscita apenas depois da morte, mas ressuscita-se na morte, ou seja, na medida em que se morre. É o carácter pascal do nosso viver quotidiano. São as “bem-aventuradas perdas de cada dia” que abrem a vida ao amanhã.

E a vida ressuscitada dá os seus frutos: actividade fecunda e unificada, capacidade de renúncia por amor e de entrega, esperança firme, oração perseverante (2 Cor 4, 10-12) e, enfim, alegria. A vitória está em, todos os dias, passar pela morte (conceito simbólico de muita coisa), não em fugir-lhe. É sofrer o desapego do pecado, sofrer a libertação em relação ao egoísmo, sofrer a libertação da dependência de bens materiais e outros, sofrer a conversão. É nesse núcleo existencial que se corrigem as vaidades balofas e auto-suficiências, promove a humildade, purifica as fraquezas e, sobretudo, faz aprender a discernir o essencial. Mas é assim que se alcança alegria. E aí, sem masoquismos, o próprio “sofrimento” é fonte de alegria porque é a ocasião das vitórias do crescimento.

O Evangelho e toda a História da Salvação convidam-nos a olhar a caminhada de Jesus para a Cruz como não acontecendo apenas após a condenação, mas sim desde a encarnação. De facto, toda a vida de Jesus foi uma caminhada para a Cruz porque toda a sua vida Jesus foi Dom-de-Si: a encarnação do Verbo de Deus é caminho de Cruz, a vida pública é caminho de Cruz, os milagres e confrontos com os judeus por causa da Lei e da religião são caminho para a Cruz, as faltas de entendimento dos discípulos são caminho para a Cruz, a última Ceia é caminho de Cruz, enfim, tudo é caminho para a Cruz.

Mas a Cruz não é o fim. A Cruz é precisamente o limite da vida humana de Jesus e, ao mesmo tempo, a superação do limite e, por isso, a manifestação maior da sua identidade como Filho de Deus. No Dom-de-Si, Jesus descobre a sua identidade e realiza a sua liberdade. A Cruz não é uma casualidade mas a expressão de um Deus que existe em nosso favor e que, dessa forma, em Cristo morreu por nós. Cruz é a vida de Deus em nosso favor (Mc 1, 11; Jo 3, 16; Rom 8, 3. 32), a definição histórico-salvífica de Deus-connosco. É o dinamismo pascal da vida em Jesus Cristo.É este, portanto, o grande desafio do Cristianismo e, nele, da Igreja: realizar na vida humana quotidiana o mistério pascal do próprio Cristo; aprender que o homem não vive apenas a partir de si mas aprende a viver uma vida realmente humana a partir de outros e do Outro (Deus). O dinamismo pascal da vida é uma alegria que fica e perdura. Há outras alegrias que até parecem brilhar mais, mas desvanecem-se.

                                                                                           
Fotografia: Dimitri Conejo Sanz
Padre Emanuel Silva


Sem comentários:

Enviar um comentário

Este é um espaço moderado, o que poderá atrasar a publicação dos seus comentários. Obrigado