sábado, 2 de abril de 2016

NÃO À PSEUDOMISERICÓRDIA

Vamos celebramos o Domingo da Divina Misericórdia. Foi o saudoso Papa São João Paulo II quem, em Maio de 2000, instituiu a Festa da Divina Misericórdia para toda a Igreja. Ele determinou que, doravante, o segundo Domingo da Páscoa se passasse a chamar Domingo da Divina Misericórdia. Misericórdia é a palavra-chave que, na Sagrada Escritura, indica o agir de Deus para connosco. Não é uma ideia abstrata mas uma realidade concreta, pela qual Deus revela o seu amor “visceral”, profundo, natural, feito de ternura e compaixão, de indulgência e perdão (cf. MV 6). “Misericordiosos como o Pai” é o lema deste Ano Santo – Jubileu Extraordinário da Misericórdia - que todos, com certeza, estamos a procurar viver da melhor forma.
A misericórdia, porém, não é para diminuir ou enfraquecer a ética cristã, o que poderia acontecer se se andasse ao som das simpatias, do politicamente correto ou de interesses mal entendidos. Muito se tem dito e escrito sobre isso e o assunto ficará sempre em aberto. O que é certo é que ninguém poderá responder aos desafios da história e respetivo caldo cultural com acomodação fácil às situações: o fácil nem sempre é o mais útil. Só a “audácia profética” será capaz de orientar e ajustar as velas para que o barco, tocado por tantos e inesperados ventos, não ande à deriva e possa chegar a bom porto. No meio destes ventos ou “vento que anda, desanda, e sarabanda, e ciranda”, como diria José Régio, o próprio exercício da misericórdia, sempre urgente e necessário, exige atenção e coerência. Não será misericórdia, por certo, quando cedemos à tentação de descer da cruz para agradar a quem quer que seja ou para acomodarmos a nossa própria consciência às situações irregulares ou menos boas em que, porventura, possamos estar a viver. Isso seria pseudomisericórdia para com os outros e para connosco próprios. Falsa misericórdia é, também, quando, por exemplo, se defende mais o agressor que a vítima, a corrução que a honestidade, a mentira que a verdade, o silêncio cúmplice que a denúncia corajosa; quando tudo se aceita, tolera ou consente, porque se tem receio de quebrar a loiça e encorajar à mudança ou à conversão; quando, “por causa de uma compreensão falsamente sentimental da misericórdia, se transgridem preceitos elementares da justiça: o amor e a misericórdia não se podem entender como revogação da justiça; quando há que comunicar a um doente ou a um moribundo a verdade sobre a sua situação, mas, por causa de uma misericórdia mal entendida, se lhe esconde a verdade ou se lhe dá uma falsa esperança que a vai impedir de se confrontar humana e espiritualmente com a sua situação”. Etc. etc. etc. … Coisas, por vezes, nada fáceis mas prementes. De facto, não podemos manipular a autêntica misericórdia para justificar a nossa indiferença para com Deus e os homens, ou para favorecer ou pactuar com situações menos boas ou reprováveis, nem para nos dispensarmos das obrigações para connosco, para com Deus, a família, a Igreja e a sociedade. Nem tampouco poderemos esquecer que a misericórdia de Deus, que é mais forte que o pecado, vem sempre ao encontro da nossa fraqueza e, se a quisermos aceitar, tornar-nos-emos capazes de ser fiéis.
São Paulo recorda o dever da correção fraterna e a responsabilidade que os cristãos têm uns para com os outros: “Ensinai-vos e admoestai-vos uns aos outros” (Cl 3, 16). Como refere o Cardeal Kasper, a misericórdia, muitas vezes, pode ser um remédio amargo, mas necessário. E Kasper dá o exemplo do médico-cirurgião que vai cortar o corpo, não com a intenção de fazer mal ou prejudicar, mas para lhe tirar o mal e o curar. E faz isso, não de forma insensível e dura, mas com sensibilidade e delicadeza. (cf. Walter Kasper, Misericórdia, Ed. Lucerna, 2015, pág. 180). Ninguém tem o direito de apontar, ferir, julgar ou condenar seja quem for: quem não tiver pecados que atire a primeira pedra. Há situações difíceis e sofridas que não se buscaram nem se desejavam mas aconteceram. E se todos temos necessidade de misericórdia, todos temos também o dever de acolher e integrar, com amor e misericórdia, sem amaciar o mandato de Jesus Cristo: “Ide, portanto, e fazei com que todos os povos se tornem Meus discípulos, batizando-os (…) e ensinando-os a observar tudo quanto vos ordenei” (cf. Mt 28, 19-20). Quando se fala em nome de Jesus Cristo, rosto da misericórdia do Pai, o que temos de transmitir não são teorias, opiniões pessoais ou ideologias por mais e melhor elaboradas que sejam, nem o que nós achamos que deveria ser, mas “tudo quanto vos ordenei”. E sempre com Ele e ao jeito d’Ele.


Dom Antonino Dias -Bispo Diocesano Portalegre- Castelo Branco

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