sexta-feira, 31 de agosto de 2018

DO ALENTEJO A XUNQUIM COM TATIANA INCORRIGÍVEL

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Portugueses houve que sempre deram ares de fortíssimos, de muito destemidos, de muito mais aventureiros, de nada oportunistas, nada. Oh, oh se não deram!... E a moquenquice de uns dias de férias também dão para ver sítios alusivos, ouvir coisas e loisas e ter conversas de chacha sobre tais lusitanas prerrogativas. Vou partilhar, embora não seja carnaval ninguém levará a mal. É fim de férias, tempo de levezas e de algumas futilidades. E de protesto por terem acabado ou nem começado!...
Quanto à nossa hercúlea fortaleza, sem escavacar muito a memória, corroboro com a clarividência de uma fonte fidedigna. Quando uns valorosos defensores da pátria, com uma vertiginosa e europeia dor ciática de sintoma junckeriano, estavam aí, num determinado rincão deste jardim à beira mar plantado, a discutir como haveriam de se defender do inimigo e qual a estratégia a usar, logo um deles concluiu com afoita determinação e sangue frio na guelra: “É fácil!... Se fizermos como eu penso, estamos safos, estão-nos todos no papo, todos!...”. De imediato, curiosos e esperançados no produto desta cabecinha pensadora, todos os valentes companheiros esticaram o pescoço, os olhos e os ouvidos, em silêncio profundo, para assimilar bem e não perder cheta de tão heroico quão urgente e necessário plano, assim exposto: “Ora, escutem bem a minha ideia, oiçam bem!... Se forem muitos!?.... fugimos!... Se forem poucos!?... escondemo-nos!... Se não for nenhum!?... combateremos até à morte, exclusive!...”. Houve fortes aplausos ao iluminado estratega, houve gritos de entusiasmo e de gratidão pela tática a implementar, houve foguetes, fogo-de-vistas e de artifício, zabumbas e charanga... Um alívio!
Destemidos também sempre fomos, não há dúvida, até passámos além da Taprobana. Lá na vila sede do meu concelho, por exemplo, ergue-se uma estátua no chafariz da praça, onde, no brasão da qual, também se recorda o gesto destemido duma senhora que, no tempo das guerras fernandinas, extenuados e quase vencidos, sem grande gente para combater, sem pão para comer e nada para oferecer, essa mulher de armas e de pêlo na venta como sói dizer-se, arrebata às mãos dos homens ineficazes o comando da praça cercada pelos castelhanos, salta os obstáculos, encoraja os desanimados, dirige a peleja. À pertinácia do inimigo que julgava conquistar a vila pela fome, ela engendra uma última e genial estratégia. Arregaça as malgas, vai à masseira, varre a pouca farinha que lá restava, coze uns pães, os possíveis, sobe às muralhas da vila e, com garbo e pose de farta e de grande humanista, lança-os ao inimigo. Dá-lhes a entender que, na praça há pão para dar e vender. Assim: “A vós, que não podendo conquistar-nos pela força das armas, nos haveis querido render pela fome, nós, mais humanos e porque, graças a Deus, nos achamos bem providos, vendo que não estais fartos, vos enviamos esse socorro e vos daremos mais, se pedirdes!”. Diz-se que os castelhanos, também eles exaustos e cheios de fome, acreditaram, desistiram, derrotados e envergonhados. E pronto, ponto, raiou a desejada bonança e inaugurou-se o heroico sossego!
Mas queiram saber que o meu apreço pelo heroísmo dos meus patrícios esboroou-se. Rolou por outra muralha e monte abaixo, como bola fugitiva, com grande dor e ranger de dentes da minha parte, por ter de reconhecer a não exclusividade do feito. Foi há anos, em Israel, em Massada. O amável cicerone contou que, quando os romanos pensavam que iriam matar à sede os últimos judeus resistentes e concentrados no alto do monte, na fortaleza de Massada, alguém, de entre eles, lançou umas bilhas de água da muralha a baixo para dar a entender aos romanos que por falta de água não seriam vencidos. Os romanos, porém, não acreditaram em tanta fartura. Arranjaram forma de fazer rampa até ao alto do monte e entrar na fortaleza. Mas, que desconforto!... Ao chegarem à fortaleza, os judeus estavam todos mortos, mais de novecentos. Preferiram combinar matar-se uns aos outros do que entregar-se às mãos dos romanos. Se era um grupo de sicários, se era um gangue de assassinos a limpar ou se era o núcleo duro da resistência contra Roma, agora não interessa saber, já lá vão dois mil anos, mais minuto menos minuto. Flávio Josefo, que se obrigou a contar a história, bem poderia ter sido mais esclarecedor!... O que é certo é que tal acontecimento ainda hoje é símbolo e motivação do patriotismo judaico.
Para falar do aventureirismo português, com todas as suas subtilezas, arranjos e desarranjos, nada melhor do que tornar presente o Senhor Ventura de Miguel Torga! Era de Penedono, Alentejo. Depois de guardar gado e trabalhar nas herdades do Sr. Gaudêncio, deixou tudo e atirou-se ao mundo. Foi tropa, esteve preso, brigou, matou, serviu em Macau, enamorou-se da filha do secretário do governador, tornou-se desertor. No mar da China meteu-se no contrabando de ópio. Em Hong Kong provocou zaragata. Em Pequim cruzou-se com o Sr. Pereira, um minhoto cozinheiro com quem abre uma casa de petiscos.
Um dia, uns americanos, bêbados, insultam o minhoto. Foi o cabo dos trabalhos. A tasca ficou em cacos, as costas de uns e de outros experimentaram a força das irritadas pauladas, a casa, um caos, foi encerrada pelas autoridades locais. Mas estes dois portugueses de olho fino e pé ligeiro não era gente de desistir. A pedido do diretor da Ford, ambos vão entregar, pelo deserto, 200 camiões na Mongólia. As coisas voltam a correr mal. O deserto foi-lhes terrível e assustador. O rapto de um milionário dá azo a mais tiros e violência. E eis que a doença bate à porta do Sr. Ventura que sobrevive graças às saborosas canjas de galinha que o Sr. Pereira lhe cozinhava. A saudade leva-os a pensar visitar Portugal mas os percalços não davam tréguas nem tempo. Um grupo de supostos negociantes de armas não queria comprar as armas que os portugueses agora vendiam, queriam obtê-las pela força. Nova guerra, mais tiroteio e violência. O alentejano, a sangrar, pisgou-se com o Sr. Pereira às costas. Este, o minhoto, tinha sido ferido de morte por uma bala bem precisa em direção a ponto fraco. Mas, se este morrera, a vida do Sr. Ventura tinha de continuar, não era homem de baixar os braços. Passado um mês, em Pequim, já dançava no Grande Hotel com Tatiana, uma russa com quem casa, contra tudo e todos. A própria Tatiana achava o casamento uma parvoeira e não mudou o seu jeito de ser e estar. Era uma mulher com gosto pela vida noturna, uma mulher do mundo e da borga. Mesmo no meio de frequente pancadaria, ela dá à luz um menino, a quem é dado o nome de Sérgio. O Sr. Ventura sonha rios de dinheiro para o filho e nessa tarefa de o conseguir, mete-se em negócios tais que o obrigaram a repatriar-se. Tatiana sente-se aliviada e mais livre, fica com o filho e a fortuna. De novo no Alentejo, o Sr. Ventura dedica-se à exploração da terra. As saudades do filho, do Sr. Pereira e de Tatiana, porém, não lhe davam sossego. Entretanto, a guerra na China e a indiferença de Tatiana, trouxeram-lhe, de surpresa, ao Alentejo, o filho com 8 anos. Soube então que Tatiana lhe escoara toda a fortuna e continuava a ser aquela mulher com gosto por cabarés e variada companhia. O Sr. Ventura, de fusíveis altamente aquecidos, ferve e deixa saltar a tampa. Interna o seu filho no Colégio de Santo António, em Lisboa, e entrega-lhe a chave da sua casa no Alentejo. Doente, triste com o que ficara a saber e sem que nada o demovesse, parte para a China com a intenção de encontrar Tatiana. Após meio ano à sua procura sem qualquer êxito, cai gravemente doente, em Xunquim. Eis senão quando, Tatiana aparece-lhe no Hospital. Olha para ela com antipatia e refila palavras de esquecer. Tatiana, porém, fria e imperturbável, cerrou-lhe os olhos que a morte lhe deixara abertos. Porque as mensalidades não eram pagas, o Colégio de Santo António despachou o filho, o Sérgio, para Penedono onde foi retomar os caminhos do seu pai: guardar ovelhas na herdade do Farrobo, do Sr. Gaudêncio.
Na verdade, o português sempre foi fortíssimo, muito destemido, muito mais aventureiro, nada oportunista, nada, basta apreciar o elevado altruísmo de quem quis dar um ombrinho na árdua tarefa de burlar, desviar ou aplicar os donativos que foram dados para as vítimas dos incêndios. No país, estes ilustríssimos professores são mais que muitos. E em paga de tais benfeitorias, ainda há quem, alegadamente, lhes queira negar este gesto de amor ao próximo e ao afastado. Já lá dizia o sapateiro de Braga: Haja moralidade ou comam todos!
Tal como Tatiana: Incorrigíveis!...

D. Antonino Dias- Bispo de Portalegre Castelo Branco
31-08-2018.

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