Há pessoas que para rezar baixam os olhos, fecham nas mãos o rosto, voltam-se para o interior. E a oração configura-se como uma imersão, um mergulho, semelhante à imagem oferecida pelo pequeno poema de Matsuo Bashô: “Silêncio/ Uma rã mergulha/ Dentro de si”. A oração é uma pedra que se afunda não dentro do lago, mas no interior vasto de si. Há outras pessoas, porém, que abrem esforçadamente os olhos ao rezar, que finalmente os abrem numa tentativa de olhar a vida no seu flagrante espanto, no seu rasgão dilacerante e no seu prazer vivo. Quer umas quer outras estão certas. Todas as formas de rezar são insuficientes. Todas são eficazes. A arte de rezar é a arte de ser, apenas isso.
Talvez a metáfora mais próxima do rezar seja a comparação com aquelas coisas que se deixam de acontecer, nós morremos: como o respirar ou o bater do coração. O orante compreende que depende vitalmente disso, que a sua é uma vida hipotecada a esse movimento. O regime de oração não é um parênteses, uma pausa, um intervalo. Nem mesmo a oração é um rito. “Descobre a porta do teu coração e então poderás descobrir a porta do Reino de Deus” — explicava são João Crisóstomo. É descobrindo a porta da existência que acedemos ao segredo de Deus.
O essencial é que a oração não seja um mero dizer, mas um dizer-se, e um dizer-se confiado. Mesmo que usemos uma oração vocal, o que conta verdadeiramente não é o verbo. Podemos dizer-nos de tantas maneiras em silêncio, na imobilidade da palavra, na fronteira ardente que é o calar ou o permanecer, sem mais. Os padres do deserto ensinavam, por exemplo, que erguer as mãos é já rezar. São Francisco de Assis defendia o mesmo sobre o andar a pé. O persa Rûmi aplicava isso ao dançar. Fundamental é a compreensão de que uma prece, por simples e balbuciada que seja, inscreve-nos no dinamismo de uma relação. Há um eu e um tu. A despersonalização de uma oração feita apenas de fórmulas acaba por ferir e ser um bloqueio à verdadeira oração. Não há oração vital sem um eu diante de um tu. Teóforo, o monge, dizia com sentido de humor que, para um orante, a consciência de que está perante Deus tem que ser tão forte e real como uma dor de dentes. Podemos tentar esquecer, mas é impossível. Esse incómodo toma conta dos nossos pensamentos. Ocorre, desse modo, um fenómeno de concentração. Na oração, Deus tem que ser mais do que uma inefabilidade sem nome: tem de ser um tu.
Não pensemos que a oração seja um caminho linear, porque a própria vida é de uma complexidade labiríntica nos seus altos e baixos. Quem quer que habite o verbo rezar sabe que ele inclui um trânsito purgativo. Tarde ou cedo sentimo-nos feridos pela contradição irresolúvel, pela dor injustificável, pela irreversibilidade que nos leva a atravessar linhas de fogo. A oração não é aquele momento em que consigo libertar-me e fugir. É sim aquele instante em que o espírito se une à minha fraqueza e dá-me forças para abraçar o próprio inferno, isto é, aceitar aquilo que me esmaga, aquilo que é maior do que eu e não consigo explicar, aquilo que se abate sobre mim sem que eu possa alterar. A maior parte da nossa oração é vazio e silêncio, não nos iludamos. Há tempos, Luís Miguel Cintra propôs-me uma coisa que me deixou a pensar. “Olha, no final da missa, quando dizes ‘ide em paz e que o Senhor vos acompanhe’ devias antes dizer ‘ide em paz mesmo que ninguém vos acompanhe’.” Pode parecer um paradoxo, mas a oração torna-se mais vital quando tocamos o silêncio de Deus, quando os nossos pés tocam a orla da sua ausência.
Pe. José Tolentino Mendonça - 14 de Agosto 2017- em iMissio
[©Revista Expresso | 2333, 15 de julho de 2017]
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