sábado, 5 de março de 2016

E O MIÚDO CONTINUAVA VIVO!...




Não raro, o problema do sofrimento dos inocentes e da prosperidade dos corruptos, levanta a questão sobre a presença e a bondade de Deus. E tanto mais nos custa entender a lógica de Deus quanto mais vivemos à revelia de nós mesmos, com vontade de nos colocar no Seu lugar e de O querer ensinar a ser justo. Alguns dos amigos leitores já foram, com certeza, a Auschwitz-Birkenau. É um cenário horrível pelo que traz à memória e significa de malvadez humana. Timothy Radcliffe, no seu livro intitulado “As sete últimas palavras”, transcreve um texto que Elie Wiesel, um preso de Auschwitz, escreveu sobre um dos muitos e terríveis enforcamentos a que assistiu. Enforcamentos solenemente horrorosos, cruéis e intimidatórios por quem se julgava e tinha como dono e senhor de tudo e de todos. Naquele dia foram três os enforcados: dois adultos e um rapazito. Elie Wiesel escreveu assim: “Os três condenados subiram juntos para as três cadeiras. A cabeça, dos três, foi introduzida ao mesmo tempo dentro dos nós corrediços. “Viva a liberdade”, gritaram os dois adultos. O pequeno, porém, ficou calado. “Onde está Deus? Onde é que Ele está?”, perguntou alguém atrás de mim. A um sinal do chefe do campo, as três cadeiras foram deitadas por terra. Silêncio absoluto em todo o campo. O sol ia-se pondo no horizonte. Em seguida, começou o desfile. Os dois adultos já não estavam vivos. Tinham a língua pendente, inchada, azulada. A terceira corda, porém, continuava a mover-se; como era tão leve, o miúdo continuava vivo…Manteve-se assim durante mais de meia hora, debatendo-se entre a vida e a morte, agonizando lentamente sob o nosso olhar. E nós tínhamos de olhá-lo bem no rosto. Ainda estava vivo, quando passei à sua frente. Tinha a língua vermelha e os olhos ainda não se tinham vidrado. Atrás de mim voltei a ouvir o mesmo homem, que perguntava: “Onde é que Deus está, neste momento?”. Então ouvi dentro de mim uma voz que lhe respondia: “Onde está Deus? Ei-lo ali, pendurado naquela forca…”.
Num dos dias da sua visita ao Quénia, em novembro do passado ano, o Santo Padre reuniu-se, no Estádio Kasarani, em Nairobi, com os jovens. Os jovens fizeram-lhe muitas perguntas e entre elas estava a do Manuel: “A pergunta que me fizeste, Manuel, é uma pergunta digna de um professor de teologia: «Como podemos compreender que Deus é nosso Pai? Como podemos ver a mão de Deus nas tragédias da vida? Como podemos encontrar a paz de Deus?» Esta pergunta, põem-na, duma forma ou doutra, os homens e mulheres de todo o mundo. E não encontram uma razão. Há perguntas a que, por mais que nos esforcemos em responder, não se consegue encontrar uma resposta. «Como posso ver a mão de Deus numa tragédia da vida?» Haverá ao menos uma resposta? Não, não há resposta. Só há uma estrada: olhar para o Filho de Deus. Deus entregou-O para nos salvar a todos. O próprio Deus fez-Se tragédia. O próprio Deus deixou-Se destruir na cruz. E, quando vier um momento incompreensível, quando estiverdes desesperados, quando o mundo vos cair em cima, olhai para a Cruz! Ali há o falimento de Deus; ali há a destruição de Deus. Mas ali há também um desafio à nossa fé: a esperança. Porque a história não acabou naquele falimento: houve a Ressurreição que nos renovou a todos”. E continuou Francisco: “Tenho uma confidência a fazer-vos… (Tendes fome? É meio-dia? Não...) Então vou fazer-vos uma confidência. No bolso, trago sempre duas coisas [tira-as para fora do bolso e mostra-as]: um terço, um terço para rezar; e outra coisa, que parece estranha [mostra uma caixa que se abre e contém pequenas imagens]… Que é isto? É a história do falimento de Deus, é uma Via-Sacra, uma pequena Via-Sacra: como Jesus sofreu desde quando foi condenado à morte até que foi sepultado... E, com estas duas coisas, procuro fazer o melhor que posso. Mas, graças a estas duas coisas, não perco a esperança”.
Caro amigo e amiga que me lês, o mistério de Deus não é uma barreira contra a qual colidimos. É, sim, uma espécie de mar imenso no qual, humildemente, sentimos prazer em mergulhar, agradecidos e confiantes nas profundezas da sua infinita misericórdia: Deus tanto amou o mundo que lhe entregou o Seu próprio Filho, não para o julgar, mas para o salvar, dando a vida, amando e perdoando, apontando-nos o caminho…

Dom Antonino Dias- Bispo Diocesano Portalegre. Castelo Branco

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