Parece um verbo idiota, este contrabalançar. Não seria mais correto pensar que as coisas simplesmente são ou não são e deveriam aspirar por todos os meios a essa clareza, ponto final? Contrabalançar dá a ideia de ficar a meio caminho, abdicando daquela inteireza que, contra ventos e marés, objetiva a nossa verdade. Soa a uma prática de equilibrismo existencial, um pé aqui e outro ali, o balanço de lá e cá. É como se, em vez de lutar por uma unidade imediata, aceitássemos a divisão como ponto de partida ou como processo, condescendendo com a disparidade que nos coube e enredando-se num jogo de compensações. É como se assumíssemos a nossa trajetória biográfica como alguma coisa que está e não está completamente nas nossas mãos, alguma coisa cindida que, ao mesmo tempo, dominamos e nos ultrapassa, determinando que viver seja, dessa maneira, uma incessante e dolorosa iniciação à arte do possível, sem passar disso. Estranho verbo este, contrabalançar, que se diria esconder dentro de si a nossa capitulação.
E, contudo, em muitas etapas da vida, contrabalançar é precisamente o contrário: é um necessário e desassombrado exercício de sobrevivência. É a única forma de não desistir de escutar e de dar legitimidade, nas condições reais que nos coube experienciar, não apenas àquilo que nos atinge exteriormente, mas àquilo que emana de dentro de nós, a essa vida soterrada, mas que nos pertence mais do que qualquer outra, porque é a expressão singular da nossa alma. Se ficamos à espera das condições ideais, há dimensões do nosso ser que jamais tocaremos, porque a pressão externa é implacável e foge continuamente ao nosso controle. O mais habitual é que tenhamos de viver tudo ao mesmo tempo, esforçando-nos por contrabalançar com sabedoria o que poderiam ser descritos como os opostos: o previsto e o inesperado, o familiar e o estranho, o choro e o riso, o dever e o desejo. Como dizia Etty Hillesum, uma das grandes vozes espirituais da contemporaneidade, morta em Auschwitz, em 1943: “A vida é difícil, mas isso não faz mal.” Ou melhor, não é isso que nos faz mal. Porque depressa aprendemos, como ela aprendeu, que sobre aqueles segmentos de caminho interrompido por arame farpado não deixa de existir o mesmo céu que cobre os maravilhosos campos desimpedidos, o vasto céu que bloqueio algum é capaz de interromper. Contrabalançar é uma forma de contornar, de resistir e de acreditar. Sempre que dissermos, por exemplo, dentro de nós e com todas as forças do nosso ser, que a vida é bela, recomeçaremos livres, em relação a tudo o que a desfigura e o resto já nem importa, seguirá como pó ao sabor do vento. Pois, no fundo — e são palavras de Etty —, “o maior roubo que nos é feito somos nós mesmos que o fazemos”. E isso acontece mais frequentemente do que pensamos, quando nos esvaziamos do melhor de nós por causa de uma visão unilateral, que não foi devidamente contrabalançada com as razões profundas do nosso coração. Quando permitimos que aquilo a que erradamente chamamos “realidade”, e que estamos tentados a aceitar como voz única que nos fala, seja afinal um rolo compressor que esmaga não só o que a nossa vida é, mas também o que ela poderia ser. Contrabalançar é um ato de insubmissão da maior importância. Etty Hillesum no campo de concentração punha-se a descrever o desabrochar de duas míseras flores que tinha num vaso. E os outros diziam-lhe: “Como é que tens cabeça para pensar em flores no meio destes escombros.” Mas Etty sabia que a derrocada fatal ocorre quando desistimos de ligar a nossa vida a uma porção, ínfima que seja, de eternidade. Aí tornam-se impossíveis os milagres e morremos.
Pe. José Tolentino Mendonça[ ©Revista Expresso | 2335, 29 de julho de 2017]