quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Tzimtzum, por Tolentino Mendonça



Penso no significado deste espaçamento que somos chamados agora a manter nas relações uns com os outros. Esta distância social começa, é verdade, como uma motivação sanitária objetiva. Pelas razões que sabemos, passamos a nos comportar assim, ponto final. Mas a nossa perceção interior, a ressonância emocional desse facto em nós, o que ele desencadeia e desencadeará se a situação perdurar, o modo como o elaboramos na nossa subjetividade significa, no mínimo, que o ponto final se torna uma vírgula. Porque se em vez de darmos um passo em frente para chegar ao outro, como nos é natural, aceitamos uma retração, um espaçamento dilatado (que pode ser de um metro e meio, dois metros, o que seja) isso altera alguma coisa fora e dentro de nós. É como se introduzíssemos um hífen entre as palavras eu e tu. Um hífen que permanece.

Como em todas as coisas podemos ver, também aqui, uma oportunidade, pelo menos para refletir sobre o modo como vivíamos a proximidade e a distância, e para revermos criticamente os nossos automatismos. Não basta aproximar-se para se ser efetivamente próximo. E, da mesma maneira, quando estamos distantes nem sempre quer dizer que estejamos desligados: pode-se experimentar na distância uma real intensidade de comunhão. A distância e a proximidade precisam, por isso, de ser esclarecidas e purificadas. E este pode ser um tempo propício.

Mas há dias dei comigo a matutar se o que nos está a acontecer não seria, à sua maneira, o nosso tzimtzum. É ao místico judeu Isaac Luria (1534-1572) que é atribuída a paternidade deste conceito. Na linguagem simbólica e paradoxal, que não raro é a dos místicos, Luria explica que para poder criar o mundo Deus teve de efetuar, em relação a si mesmo, um movimento de retração, pois, sendo Deus omnipresente, não havia espaço algum que não fosse Deus. O tzimtzum é essa retração, esse vazio gerado pela retirada de Deus para permitir a emergência do mundo. A criação como que implicou, por isso, uma espécie de exílio do próprio criador: ele retira-se em parte do seu ser, reforçando ainda mais o seu mistério.

Não basta aproximar-se para se ser efetivamente próximo. E, da mesma maneira, quando estamos distantes nem sempre quer dizer que estejamos desligados

No século XX, o conceito do tzimtzum vai, curiosamente, reaparecer em autores como Simone Weil ou Hans Jonas, e em ambos os casos sob o impacto da devastação espiritual provocada pela experiência da II Guerra Mundial. Weil, interpretando a natureza contraditória do mundo, escreve: “Do ponto de vista de Deus a criação não é um ato de autoexpansão, mas de diminuição e renúncia. Deus com todas as criaturas é menos que Deus só por si. Mas Deus aceitou esta diminuição.” De forma análoga, temos o posicionamento de Hans Jonas na sua obra “O Conceito de Deus Depois de Auschwitz: Uma Voz Hebraica”. Jonas coincide na consideração de que apenas a autolimitação do princípio divino abriu espaço à autonomia e existência do mundo, mas a sua representação de Deus é a de um Deus em sofrimento desde a origem do mundo e, ainda mais, desde a criação do homem. O Deus do tzimtzum, segundo o autor, é um Deus de silêncio, um Deus vulnerável e preocupado, mas é também um Deus surpreendentemente próximo e aberto à relação. De facto, o tzimtzum obriga-nos a pensar num duplo sentido: por um lado, o seu significado é o de um exílio que se prova (e exílio quer dizer espaçamento, radical insegurança, esvaziamento de si); por outro, faz-nos compreender o espaçamento como possibilidade concedida à alteridade e a um efetivo (re)encontro com o outro. Vem-me à cabeça o belíssimo poema de Adília Lopes: “Na vida e no poema/ dar menos um passo.” Saberemos o que isso representa? Saberemos fazê-lo?



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