quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Advento, por Tolentino Mendonça



Não, o confinamento não é apenas uma invenção desta estação atribulada, e nem sempre é um limite que nos chega imposto de fora. Se pensarmos mais a fundo na experiência humana que realizamos, não é difícil nos reconhecermos confinados há muito tempo, blindados por decisão própria, como se a forma final da nossa existência coincidisse na perfeição com o exíguo território daquilo que dominamos. E, porém, se alguma coisa nos distingue no universo é precisamente a impossibilidade de coincidirmos connosco próprios e de sermos nós a resposta para a interrogação que trazemos. Na verdade, é sempre na luz da candeia avizinhada por um outro, e pelos outros, que acedemos à visão do que somos, pois o nosso olhar e as nossas possibilidades, por si só, são inconclusivos. Mas custa-nos reconhecer isso. Vida fora, tornamo-nos hábeis em substituir as portas por muros e a preferir as estalagens ao aberto dos caminhos. Vida fora, conformamo-nos, sabe-se lá porquê, à ideia de que só podemos contar connosco mesmos, revendo em baixa as nossas expectativas e removendo da nossa alma a espera. E, contudo, bem mais do que possamos imaginar, debaixo de todos os artifícios e camuflagens, nós permanecemos os esperantes. Dependemos do ad-vento, do que está para chegar.

Uma das reflexões contemporâneas mais incisivas sobre a espera é aquela proposta por Martin Heidegger através da distinção entre “esperar” e “estar/ser em espera”. O esperar pontual liga-se habitualmente a um objeto, enquanto que a espera autêntica não é espera disto ou daquilo, mas sim abandono e entrega ao aberto. Só quem tem a faculdade de se abandonar ao aberto experimenta o que seja a espera. De pequenas esperas os nossos dias transbordam e, não raro, parece que aí tudo se esgota. Há aquela parábola terrível que nos é oferecida por Kierkegaard: no presente, a condução do barco passou para as mãos do cozinheiro e o que vem transmitido ao megafone do comando já não é a rota, mas o que comeremos amanhã. Da espera de longa duração, daquela que nos confronta não apenas com as interrogações penúltimas, mas arrisca tocar as últimas, dessa que se prende com o sentido da vida e com aquilo que nos salva, aprendemos a proteger-nos. E esse é também o nosso drama.

É sempre na luz da candeia avizinhada por um outro, e pelos outros, que acedemos à visão do que somos, pois o nosso olhar e as nossas possibilidades, por si só, são inconclusivos

A liturgia cristã é uma escola e um teatro da espera. E, em particular, neste tempo até ao Natal — tempo que, não por acaso, recebe o nome de Advento — aquilo que se treina é precisamente a grande espera. Há dois elementos chamados a entrar em jogo: a pobreza de coração e a compreensão de que o dom antecede a procura. Em campo está a pobreza, porque a verdadeira espera é uma arte da despossessão. Em vez de nos apoderarmos do tempo, como se fossemos os seus senhores, colocamo-nos à escuta, trabalhando o esvaziamento, tanto externo como interior. E em campo está uma nova compreensão do modo como nos articulamos com o dom. Normalmente, colocamos primeiro a procura e depois o dom, como se fosse um fruto daquela. Ora, o tempo do Advento opera uma viragem: referindo-se ao dom que o mistério da incarnação de Jesus representa, mostra como é ele a anteceder e a resgatar toda a procura. Naquela frase enigmática do profeta Isaías: “Fui buscado por aqueles que não perguntavam por mim, revelei-me àqueles que não me procuravam” (Is 65,1), percebemos que, de facto, a prioridade pertence ao dom, e que este é o motor de tudo o resto. Por isso, como escreve o teólogo Ermes Ronchi, o Advento constitui “uma porta que se abre, um horizonte que se alarga, uma brecha na muralha que nos cerca, um buraco na rede, uma fissura no teto, um punhado de luz que a liturgia nos atira à cara. Não para ofuscar, mas para nos acordar”.


[SEMANÁRIO#2510 - 4/12/20]



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