sexta-feira, 11 de março de 2022
A DITOSA NOITE QUE NOS CONVOCA E PROVOCA
Vamos preparar bem essa noite em espírito de sinodalidade? Acha que é muito cedo? Nuns lugares talvez seja, noutros não será. Será cedo onde os pastores só têm uma paróquia para servir, coisa raríssima. O desafio que proponho é para os outros. E quem parte cedo pode pensar muito melhor o caminho a fazer, pode ir limpando o chão das possíveis resistências, minas e armadilhas, pode ir andando mais devagar e sentar-se um pouco aqui ou acolá a comer um gelado ou um kiwi, pode escutar bem o que vai ouvindo e apreciar a beleza do que vê, ouve e acontece para melhor discernir sem chegar sozinho, tarde e cansado, mas em pelotão e feliz. Vamos a isso!?
Como todos sabem, nenhuma ação da Igreja se pode igualar à liturgia. A liturgia é um tesouro evangelizador desde que preparada, centrada em si e não nos protagonistas. Se bem celebrada, escutada e vivida com serenidade e fé, por todos os presentes, é de valor incalculável. Fala por si, não precisa de grandes explicações nem de muita azáfama no espaço litúrgico que a possa descentralizar. Mas hoje refiro-me sobretudo à Vigília Pascal, a esta ação sagrada por excelência. Na liturgia celebramos o mistério Pascal pelo qual Cristo nos salvou. Celebramos o mistério da sua Paixão, Morte e Ressurreição “até que Ele venha”, até que “Deus seja tudo em todos”. Por ela, a Igreja realiza e prolonga a obra sacerdotal de Cristo para a santificação dos homens e a glorificação de Deus. A Constituição Dogmática sobre a Sagrada Liturgia ensina que “Na liturgia Deus fala ao seu povo. Cristo ainda anuncia o Evangelho. E o povo responde a Deus, ora com cânticos, ora com orações” (SC33). Inventar, substituir ou inovar em liturgia tem um de dois pressupostos: ou se sabe muito da matéria e se tem autoridade para o fazer, ou se é extremamente ignorante ao ponto de, em nome da inteligibilidade da mesma, dela fazer tábua rasa, manifestando falta de entendimento litúrgico e de comunhão eclesial. A ‘criatividade’ na liturgia está no ser capaz de a preparar bem, interior e exteriormente, fazendo saborear o verdadeiro louvor ao Senhor e tornar presente na vida de cada crente e da Igreja a salvação celebrada.
É verdade que a Vigília Pascal, ao longo dos tempos, foi sofrendo algumas modificações quanto à hora de ser celebrada. Nestes tempos que são os nossos, está ordenado que a Vigília só seja celebrada à noite, pelo menos depois que o sol se ponha e antes do amanhecer do domingo. É a noite das noites, a noite santa, a noite sacramental, a noite do memorial do Cristo Ressuscitado, fonte e centro da Eucaristia e de todas as Liturgias. É a Vigília das vigílias, dela parte toda a espiritualidade da Igreja e para ela tudo converge. E o Catecismo da Igreja Católica afirma que “a Páscoa não é simplesmente uma festa entre outras: é a «festa das festas», a «solenidade das solenidades», tal como a Eucaristia é o sacramento dos sacramentos, o grande sacramento. É «o grande domingo» da Semana Santa, da «semana maior». É o mistério da ressurreição, em que Cristo aniquilou a morte, penetra no nosso velho tempo com a sua poderosa energia, até que tudo Lhe seja submetido (cf. CIgC1169).
Desde há muito que tenho feito força e dado a entender que é preferível fazer uma celebração digna e serena numa das paróquias que estão confiadas a cada sacerdote do que andar a correr dum lado para o outro, stressados, sem qualquer espécie de proveito para quem quer que seja, e a banalizar o que é tão sério, importante e rico de sentido e conteúdo na vida da Igreja. Embora apele à compreensão dos párocos e diáconos, dos ministros extraordinários da Palavra e de todos os colaboradores e comunidades cristãs, sei que nada disto irá por decreto do Bispo ou por imposição seja de quem for, nem é isso que se pretende. Entendo, porém, que quem tem várias paróquias, devia eleger uma, em metodologia sinodal, para a celebração da Vigília, com os batizados que houvesse, sem obrigar. Este é um desafio que se deveria perseguir colegialmente, fazendo ressaltar nessa caminhada as verdadeiras razões que levam a isso, mudando para melhor. E até poderá acontecer que, de ano em ano, se venha a celebrar rotativamente, se as igrejas das outras paróquias tiverem condições para tal. Na Vigília Pascal lê-se longamente a Escritura, realça-se as prefigurações do batismo, descobre-se melhor o seu profundo significado teológico, sobressai essa vida nova de quem morre e ressuscita com Cristo pelo Batismo. Os cristãos somos filhos da Páscoa, nascemos na noite santa da vitória de Cristo sobre a morte. O tempo pascal, sobretudo ao Domingo, é o tempo mais favorável para a celebração do Batismo, mas a Vigília Pascal é o melhor e mais significativo momento.
Há muitas tradições populares que saíram da celebração festiva e evangelizadora do mistério Pascal. Hoje, porém, em alguns sítios, porque não se renovaram, estagnaram no tempo e tomaram a vez da celebração litúrgica da Vigília Pascal e da própria Páscoa. Muitas destas tradições estão mais ao serviço do turismo e do bairrismo local do que a fazer viver o que lhes deu origem, a sua fonte. As tradições e a piedade popular merecem-nos todo o respeito e atenção, têm alto valor e significado, não estamos contra elas. Sem lhes tirar o lugar e o sentido, porém, devem harmonizar-se com a celebração do que lhes deu vida e sentido mas passou para segundo lugar. Só isso as manterá verdadeiramente vivas e úteis a fazer valer a sua origem e a preocupação de evangelizar de quem as iniciou. Uma coisa não tira a outra, podem coexistir as duas, mas cada uma no seu lugar. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, embora se ajudem mutuamente na preparação e celebração do mistério pascal.
Nesta celebração que proponho, as pessoas que veem de cada uma das outras paróquias, deveriam trazer o Círio Pascal paroquial para neles se acender o lume novo. É a luz de Cristo que, nesta ditosa noite, gloriosamente ressuscitado, dissipa as trevas do coração, do espírito e do mundo, faz ressoar no templo as aclamações do povo de Deus anunciando o triunfo de tão grande Rei que faz com que a Igreja exulte e cante de alegria porque o céu se une à terra e o homem se encontra com Deus. A Água nessa noite solenemente benzida, se for partilhada pelas outras paróquias para a celebração de próximos batismos, seja transportada com responsabilidade e em recipientes dignos.
Importa preparar bem os leitores para que a celebração não fique estragada por leituras inaudíveis, ininteligíveis, fracas ou feitas com ‘esporas na língua’, apressadas, bem como preparar os acólitos e todos os intervenientes na dinâmica celebrativa, sem esquecer os salmistas e cantores, pensando em todas as coisas e pormenores que sejam necessários. Nas paróquias onde, no Domingo de Páscoa, só haja possibilidade de haver celebração da Palavra, que esta também seja muito bem preparada e celebrada, envolvendo a comunidade. Poder-se-á também introduzir solenemente e explicar à comunidade o significado dos Santos Óleos. Vamos a isso?...
D. Antonino Dias - Bispo Diocesano
Portalegre-Castelo Branco, 11-03-2022.
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