Antes, porém, de falarmos do sobrinho em Portalegre, vou recordar o tio, o grande patriota, sábio e santo, orgulho de Portugal e dos portugueses. Falamos de Bartolomeu Fernandes Vale, isto é, Bartolomeu dos Mártires, dos “Mártires” por ter nascido e sido batizado na freguesia dos Mártires em Lisboa. Nascido em maio de 1514 e falecido em julho de 1590, festejá-lo-emos na próxima segunda-feira. De inteligência rara e expoente do pensamento e da fé, foi humilde e simples na sua grandeza, evangelizador e pastor exímio, bispo sempre presente com “grande zelo apostólico, hábitos excessivamente frugais, rigorosos e disciplinados”. Quando a coragem juvenil do rei D. Sebastião desaguou em fraqueza humilhante e o fez sumir em Alcácer Quibir, Portugal engolfou-se numa crise de indefinição quanto à sua independência. No debate em que todos se aguilhoavam, Bartolomeu dos Mártires foi pessoa de bom senso ao lado duma solução pacífica que ultrapassasse tal crise. Coisa que, conforme os tempos e os seus ventos, conforme as sensibilidades interpretativas e o puxar das brasas para interesses de ocasião, a sua intervenção não deixou de ser muitas vezes retomada como assunto de controvérsia. No Concílio de Trento, onde foi uma das vozes de referência sempre escutada com a maior atenção e muito proveito para a Igreja, mesmo aí não deixou de defender os pergaminhos de Portugal. Após 32 anos de grande trabalho, e trabalho de qualidade como Arcebispo de Braga, recolheu ao convento de São Domingos, na cidade de Viana do Castelo. Aqui se encontra ainda a sua cela, assinalada na parede exterior do convento com uma placa junto à janela, e transformada, sem grandes alterações no seu interior, num oratório interno para uso do pessoal ao serviço da cúria diocesana que funciona no convento, bem como ao serviço de algumas atividades pastorais que ali se desenvolvem. Aquando da sua morte, quiseram levar o seu corpo para Braga. Viana alvoraçou-se, e, ó pernas, para que vos quero! De toda a parte, a gente correu célere e lacrimosa para ver e tocar o cadáver do santo que os soldados tiveram de defender, dizendo a todos que daqui não saí, e não saiu mesmo. Ali se encontram os seus restos mortais, na grande e bela igreja do convento, presentemente igreja matriz da paróquia de Nossa Senhora de Monserrate na qual eu fui ordenado Bispo em 21 de janeiro de 2001.
Mas hoje eu queria sobretudo recordar o sobrinho, Dom Diogo Correia, o quarto bispo de Portalegre. Natural de Lisboa ou de Setúbal (?), era filho do alcaide-mor de Braga e sobrinho de São Bartolomeu dos Mártires. Foi cónego em Braga, visitador da arquidiocese, abade de uma abadia, e, após a frequência desta escola, foi nomeado bispo de Ceuta, aí servindo doze anos. Ceuta fora conquistada pelos portugueses em 1415, sendo posteriormente elevada a diocese. Mais tarde, foi Diocese Primaz de África, acumulando também com as administrações de Valença do Minho, que pertencia a Tui, e com as de Olivença, que estava com Badajoz. Após isso, foi sufragânea de Braga e, mais tarde, de Lisboa. A partir de 1645, passou a ser território espanhol, sendo depois extinta e incorporada na Diocese de Cádis, Cádis-Ceuta.
Pelos seus dedicados trabalhos em Ceuta, D. Diogo foi nomeado Bispo de Portalegre. Como Bispo eleito desta diocese, estando ainda em Lisboa, “mandou seis moios de trigo à casa da Santa Misericórdia, para que se repartissem por pessoas pobres e necessitadas. Valia nesta cidade o alqueire de pão por quinhentos reais”. Esta sua atitude estimulou os poderosos e ricos desta cidade de Portalegre à partilha, encheram-se de nove horas e começaram a fazê-lo também. Dom Diogo entrou na Diocese a 15 de setembro de 1598, mas já dela havia tomado posse no terceiro Domingo de julho, representado pelo Deão da catedral, Francisco Alvarez Pimentel: faz anos que tomou posse na próxima terça-feira. “E depois de estar em sua cadeira, foram tantas as esmolas que fez, tantos os vestidos que deu a pobres, tantas as órfãs que amparou e tantas as pobrezas que remediou que eu não me atrevo a contá-los”. A todos pedia que o informassem de alguma situação de necessidade e “não sabia dar senão à mão cheia, e sempre dizia, quando dava, que perdoassem que era pouco, mas que outro dia haveria ocasião para mais”. À vila de Alegrete, “que é terra do seu bispado que dista duas léguas desta cidade, e sabendo ele a falta que havia para se curarem tão graves enfermidades, por ser gente pobre e não haver botica nem físico nem barbeiro, mandou tanta quantidade de dinheiro à casa da saúde que bastou para tudo se remediar, além das conservas e caixas de marmelada, pães de açúcar e açúcar rosado e tudo o mais que havia em sua dispensa...”
Talvez influenciado pelo testemunho do seu tio em Braga, a sua vida muito “impressionou os seus diocesanos pela frugalidade da sua mesa, pela piedade e solicitude pelos pobres”. Quando dava alguma vez a quem já tinha dado e era avisado de que estava a ser enganado, respondia que era um ditoso engano. Foi ele quem chamou a Portalegre os Jesuítas, dando origem ao Colégio de São Sebastião que, com o Seminário, foram, ao tempo, os dois centros culturais da cidade e da região. Com a expulsão dos jesuítas, o Marquês de Pombal, agredindo e torturando o edifício tanto quanto o necessário, o Colégio foi adaptado a uma fábrica de tecidos, a Fábrica Real. Hoje é a sede da Câmara Municipal de Portalegre.
Após já ter deixado o bispado, D. Diogo recolheu a sua casa e propriedade, ainda hoje com uns azulejos na parede, ao lado do portão, onde quem passa na estrada de Portalegre para Castelo de Vide pode ler: “Quinta do Bispo”. Aí, segundo a tradição, dedicava-se a modelar imagens de Jesus flagelado: “Senhor da Paciência”, “Senhor dos Aflitos”, “Senhor do Bonfim”. De acordo com a tradição local, seria até D. Diogo quem modelou o original da imagem do “Ecce Homo”, cuidada ao longo dos tempos pelos seus devotos e que hoje se encontra na igreja do Senhor do Bonfim. Uma joia de igreja do século XVIII, decorada a talha e com pinturas de alto valor que chegou a ser protegida pela esposa de D. João V, adquirindo o título de “Real Igreja do Bonfim”. A Irmandade chegou a ter 24 deputados, 12 clérigos, 12 seculares e a Rainha, Protetora.
Falecido em 16 de outubro de 1614, D. Diogo foi trazido de noite “com muitas luminárias a cavalo, e posto na sala em lugar alto”. Ali vieram os religiosos de São Francisco e cantaram as Vésperas dos Defuntos. Logo veio todo o clero, priores e curas de todas as igrejas e lhe cantaram as Matinas, estando todo o cabido sentado ao redor. Posto isto, foi levado à igreja no esquife do cabido “com grandes lágrimas e gritos dos pobres, de que estava cheia toda a rua desde a sua porta até à praça”. Colocado no meio da igreja e terminado o cerimonial fúnebre, foi depositado na sepultura que o bispo anterior, Dom Frei Amador Arrais, tinha preparado para si mas acabou por não usar, ficou em Coimbra.