domingo, 13 de abril de 2014

Domingo de Ramos: Da Cruz avista-se a manhã de Páscoa


Cristo crucificado


Estamos no pórtico da Semana Santa. Milhões de crentes têm diante dos olhos o drama do justo que morreu na cruz. Milhões de crentes de outras religiões têm diante dos olhos o calvário que atravessaram os povos subjugados para chegar à liberdade. Ele que era a Vida, «gustó la muerte, soledad divina», (Unamuno). Jesus sofreu a Cruz por sua atitude e postura de homem livre frente à estereotipia morta de uma religião legal, frente à ignorância com que o levaram à morte (não sabiam o que faziam). Para testemunhar da Vida sem fim. Para contrariar a linguagem do mundo, hipócrita, niilista.

Estamos a seguir os passos daquele que a multidão acolhe hoje - Jesus como um triunfador - e para quem, quatro dias depois, pede a crucificação. É o mimetismo que reúne todos os que participam, enquanto actores ou apenas como espectadores. É o mimetismo que faz de Jesus aquilo em que ele se vai tornar, um bode expiatório. A solidão extrema de Jesus é tão extrema que a vítima tem a impressão de ser rejeitada pelo próprio Deus: «Meu Deus, porque me abandonaste?»

Aquilo que ressalta desta festa é que ela é já a festa da Páscoa, mas vista a negativo. Afirmamos a vitória e, ao mesmo tempo, sabemos que ela é invisível, silenciosa, escondida na hora em que Jesus entra na Paixão e nós no calvário das nossas vidas. A festa hoje é a Ressurreição mas com uma multidão que aclama um Homem humilhado, aparentemente submetido ao poder da morte e aos poderes deste mundo. «Salve», grita a multidão, saudando algo de muito antigo que irrompe no presente: David, esse rei segundo «o coração de Deus», como diz a Escritura.

Estranho rei que vai morrer: o jumento não vem arriado com vestimentas reais mas com as roupas dos que o seguem. Hoje, a festa é essa mistura inacreditável do silêncio, da humildade de Deus que vela ainda pelo poder que subverterá o mundo e a sua divisão do visível e do invisível e nos abrirá as portas do Aberto.

Fazer do fracasso um êxito, converter a Cruz em esperança foi o que fizeram os primeiros cristãos, isto é, aqueles que reconheceram em Cristo o seu estandarte, o seu caminho, a sua Cruz. A festa de Ramos traz consigo a inquietante questão: «Onde está o teu Deus?», e as contradições que a nossa vida conhece: nós somos os crucificados pascais, marcados pela assinatura da alegria-triste que está em tudo, pela treva luminosa em que se faz a vida.

Só a crença na presença de Deus na nossa vida altera o que sabemos de nós e do mundo. Deus, ao encarnar, tornou-se um de nós. Não imitamos Deus fugindo do mundo e de nós, com paliativos e denegações. Deus fez o contrário (Hino aos Filipenses). Jesus escolheu a morte, isto é, deu-lhe um sentido: nenhum bode salva. O que dá de singular na morte de Cristo não é o modo como morre. Só a Cruz nos surpreende, nos arranca à mundanização de Deus: Deus vem de Deus.

O discípulo deve saber isso, se é um imitador de Cristo. A sua missão é amparar os extenuados, ouvir tudo sem resistir, sem recuar, expor-se a tudo, à violência da palavra e do gesto e, resistindo, mudar-se em pedra, tornar-se impermeável ao processo de cancerigenação social que indiferencia tudo. Tornar-se indiferentes à fanfarra que acompanha os carros de guerra dos vencedores e que envenena a fonte. O essencial é não perder a voz, essencial é protestar, louvar.

Tornar-se cristão, fundamentalmente, é dar-se conta de que não há apenas bodes expiatórios nos outros. Paulo é um perseguidor convertido. Antes da conversão, ele pensava não ter bodes expiatórios. A vida quotidiana dos homens é a violência. De que lado olhamos o crime: do ponto de vista dos criminosos ou do lado da vítima inocente? Quem é a vítima? Não podemos defender uma posição qualquer. Afinal, perseguimos em nome das vítimas!

A guerra, a violência que a televisão encarna, anda no ar. Comova-nos a morte do outro mais do que o imaginário da minha própria morte. Dê-nos Deus a graça da resistência à nossa vida: a resistência da pedra ao «pó» dos outros ou à tentação de convertermos a vida num calvário sadomasoquista, resistindo aos consensos moles.

Que a celebração da Paixão não nos feche no teatro dos nossos males (do nosso imaginário) ou na justificação da morte. Deus não ficou na Cruz: os nossos sofrimentos, a morte das vítimas da guerra não são menos intoleráveis. A violência pode ser justificável, nunca será legítima (Hannah Arendt) .

Que o Espírito nos dê o dom da «resistência passiva» contra o reino da pura violência. Da Cruz avista-se a manhã de Páscoa. Que Deus nos encaminhe para lá, cada um com a sua cruz e a sua palma: para lá de testemunharmos da vitória sobre a morte e do silêncio dos inocentes.



José Augusto Mourão
In Quem vigia o vento não semeia, ed. Pedra Angular
12.04.14

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