Que podemos dar aos outros de mais precioso que a nossa atenção criativa, o nosso cuidado, o nosso tempo, a nossa fidelidade?
Quando as crianças percebem — e percebem depressa — que o Pai Natal é uma ficção falam disso entre si, mas perante os adultos fingem ainda por um tempo o contrário, porque sentem que isso lhes agrada. O Pai Natal é uma crença que de tão efémera se torna numa representação cultural ou familiar tácita, apenas isso. Não admira que muitos se questionem sobre a razão da persistência da figura se ninguém, entre graúdos e miúdos, acredita realmente nela. Será o Pai Natal uma imposição puramente comercial, um ícone oco, um símbolo gasto e estafado que nada tem a dizer? Provavelmente sim, se pensarmos na banalização massiva a que anualmente assistimos. E, porém, vale a pena sondar esta coisa estranha que é os pais continuarem a atribuir a outra entidade — uma entidade tão gráfica e pitoresca como o Pai Natal — os presentes que eles mesmos compram para os filhos. Poder-se-ia logicamente pensar que faria mais sentido se o presente estivesse ligado ao rosto deles, um rosto conhecido, transmissor de confiança e afeto, um rosto que reforça o contexto habitual da criança. Em vez disso, o dom é atribuído a uma entidade anónima, desconhecida, que emerge anualmente e de forma fugaz, sem uma relação individualizada com aqueles que presenteia. Mas esse facto conduz-nos a refletir sobre aquilo que se ativa no ato de dar e de receber. O que significa dar? Quem é o agente do dom? De quem recebemos nós aquilo que nos é dado? O sentido submerso do Pai Natal decide-se aí.
Importa notar que o Pai Natal não deixa de ser um pai. Ou melhor, o pai de um pai, um avô, se considerarmos a idade, as barbas brancas, o humor tilintante e redondo, a bondade algo extravagante. Trata-se, no fundo, de um antecedente, de alguém que representa não apenas o instante de agora, mas o que nos é transmitido de geração em geração, aquilo que os nossos pais nos dão porque antes receberam dos seus pais e por aí fora. O Pai Natal alarga os apertados metros quadrados da família contemporânea, restabelecendo e dilatando laços, testemunhando inclusive tudo aquilo que se recebe de outros que não apenas os pais, que não apenas aqueles que integram o quadro ordinário da vida. E, com isso, une cada criança a todas as crianças do mundo, na expectativa e no entusiasmo pelo dom, sem o qual a vida não era nada. O dom — não o esqueçamos — é muito diferente do mero circuito, tão sonâmbulo quanto voraz, da troca e do comércio, embora hoje pareça totalmente sequestrado por essas lógicas. Que podemos dar aos outros de mais precioso que a nossa atenção criativa, o nosso cuidado, o nosso tempo, a nossa fidelidade ao que cada um, a cada momento, é? O dom gera o dom, mas não na direção da gramática mercantil que busca o proveito próprio mais do que a experiência autêntica da dádiva. O divulgadíssimo do ut des (“dou-te para que me dês”) é um mote que atraiçoa a beleza do dom que só pode ser uma expressão do amor sem cálculo e sem medida. Assim, torna-se urgente resistir à pressão comercial que enche o saco do Pai Natal de coisas, coisas e mais coisas que têm como único efeito uma neutralização da relação, um perpetuar mascarado da indiferença e da distância, em vez da construção de uma presença calorosa, disponível e confiada da nossa humanidade diante da humanidade dos outros.
Por isso, quando nós adultos nos sentarmos junto das crianças, mesmo das que ainda não sabem escrever, para que elas escrevam a carta ao Pai Natal é importante termos para nós bem clara a oportunidade e o sentido que se jogam aí. Precisamos reaprender a arte do dom.
[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2248 | 28/10/15]
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