sábado, 24 de fevereiro de 2018

FALA POUCO E TOLERA OS FALADORES

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Napoleão Bonaparte teria dito que a melhor figura de retórica é a repetição. O ditado popular refere que água mole em pedra dura tanta dá até que a fura. Da sabedoria popular também se ouve que de grão a grão enche a galinha o papo e que devagar se vai ao longe. E muito mais sabe o povo que, inteligente, nunca diz tudo quanto sabe, vai dizendo...
O Papa Francisco também vai nessa, é do povo. E diz, e repete, e volta a dizer, e não se esquece de repetir, e lá volta a dizer, aqui, ali, acolá, mais além, dentro e fora dos muros do seu habitat. A sua experiência de vida tem-se sentido tocada e muito sofrida pela maledicência dos instalados na sua verdade e se torcem todos com aquilo que ele diz. Mas não só. Ele sabe, também pela sua experiência de vida, quanto esse hábito de dizer mal, não só fica mal, mas faz muito mal, faz sofrer, cria divisões, guerras e guerrilhas, grupos e grupelhos. Ainda há pouco ele afirmava que “o inimigo da harmonia … é o espírito da maledicência … O que destrói uma comunidade é falar mal dos outros … Há uma imagem que gosto de usar para dizer o que é o espírito da maledicência: é terrorismo. Sim, terrorismo. Pois quem fala mal de outro, não o faz publicamente. O terrorista não diz publicamente: «Sou um terrorista». E quem fala mal de outro, fá-lo às escondidas: fala com um, atira a bomba e vai-se embora. E aquela bomba destrói. E ele vai, tranquilamente, atirar outra bomba … quando tiveres vontade de falar mal de outrem, morde-te a língua; o mais provável é que ela se inche um pouco, mas não causarás dano ao teu irmão ou à tua irmã…”.
Neste contexto de Quaresma, não será preciso a cada um indagar muito sobre por onde é que há de passar o seu esforço de conversão, também neste âmbito de ser ou não bisbilhota. No entanto, a indiferença ou o abandono de Deus e de si próprio, por um lado, e a poeira da vida, poeira, aliás, sempre acarinhada, por outro lado, podem vir a exigir, aqui ou ali, alguma atenção mais aprofundada para ir ao encontro da verdade em si próprio. Verdade talvez desde há muito mal tratada, quer no coração já endurecido e incapaz de amar e de fazer o bem, quer na consciência que já não é capaz de distinguir o bem do mal e age como se tudo fosse igual a tudo. Cada um lá saberá e muito melhor saberá o que fazer, com humildade e persistência, mesmo que, à partida, se sinta o melhor e o maior do mundo. Ninguém tem o dever, muito menos o direito de enganar-se a si próprio.
Como esta semana me foi muito ocupada, deixo um texto interessante de São Martinho, do seu Opúsculo “Fórmula de vida honesta”. São Martinho viveu no século VI, era da Panónia, uma antiga província do Império Romano delimitada ao norte e no leste pelo rio Danúbio e em cujo território estão hoje a Hungria, parte oriental da Áustria, o norte da Croácia, o noroeste da Sérvia, a Eslovênia, a porção ocidental da Eslováquia e ainda o norte da Bósnia e Herzegovina. Martinho foi o grande evangelizador dos suevos, foi Bispo em Dume, nos arredores da cidade de Braga, e Bispo metropolita de Braga. Escreveu ele:
“Não procures granjear a amizade de alguém por meio da adulação, nem permitas que outros por meio dela granjeiem a tua. Não sejas ousado nem arrogante; submete-te e não te imponhas; conserva a serenidade e aceita de boa mente as advertências e com paciência as repreensões. Se alguém te repreender com razão, reconhece que é para teu bem; se o faz sem motivo, admite que é com boa intenção. Não temas as palavras ásperas, mas sim as brandas. Emenda-te dos teus defeitos e não sejas curioso indagador ou severo censor dos alheios; corrige os outros sem incriminação, prepara a advertência com mostras de sincera simpatia, e ao erro dá facilmente desculpa.
Não exaltes nem humilhes pessoa alguma. Sê discreto a respeito do que ouves dizer e acolhedor benévolo dos que te querem ouvir. Responde prontamente a quem te pergunta e cede facilmente a quem porfia, para que não venhas a cair em contendas e imprecações.
Se és moderado e senhor de ti mesmo, vigia sobre as moções do teu ânimo e os impulsos do teu corpo, evitando todas as inconveniências; não os ignores pelo facto de serem ocultos; pois não importa que ninguém os veja, se tu de facto os vês.
Sê flexível, mas não leviano; constante, mas não teimoso. A tua ciência não seja ignorada nem molesta. Considera a todos iguais a ti; não desprezes os inferiores com altivez, e não temas os superiores, se vives retamente. Em matéria de obséquios e saudações não te dispenses nem os exijas. Para todos deves ser afável; para ninguém, adulador; com poucos, familiar; para todos, justo.
Sê mais severo no discernimento do que nas palavras e mais nobre na vida do que na aparência. Afeiçoa-te à clemência e detesta a crueldade. Quanto à boa fama, não apregoes a tua nem invejes a alheia. Sobre rumores, crimes e suspeitas não sejas crédulo nem inclinado a pensar mal, mas opõe-te decididamente àqueles que com aparente simplicidade maquinam a difamação alheia.
Sê tardo para a ira e fácil para a misericórdia; firme nas adversidades, prudente e moderado nas prosperidades; ocultador das próprias virtudes como outros o são dos vícios. Evita a vanglória e não busques o reconhecimento das tuas qualidades.
A ninguém desprezes por ignorante. Fala pouco, mas tolera pacientemente os faladores. Sê sério mas não desumano, e não menosprezes as pessoas alegres.
Sê desejoso da sabedoria e dócil. Sem presunção, ensina o que sabes a quem to pedir; e sem disfarçar a ignorância, pede que te ensinem o que não sabes.”

D.Antonino Dias - Bispo de Portalegre Castelo Branco
Portalegre, 23-02-2018

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