quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Queria contemplar o vale


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Compreendes como é um dom poder contemplar o vale diante do teu olhar. A imensidão do verde em diferentes tonalidades mistura-se com os raios solares. Mas não vês somente, escutas.

O canto dos pássaros, alguém com uma rebarbadora, e o zumbido das moscas. O humano mistura-se com a natureza de onde emergiu para nos elevar ao pensamento essencial em... Deus. Que bela a criação!

É claro que preferia ouvir apenas o canto dos pássaros. É claro que preferia não ter as moscas a azucrinar os meus ouvidos. Mas o que parece ser a imperfeição relativa ao desejo do perfeito torna-se, precisamente, o relevante a contemplar.

Pela vida há muitos zumbidos que incomodam porque nos distraiem do essencial. Levam-nos a esbracejar, desviando o nosso olhar, de tal modo que o mais pequeno ser irritante (a mosca) faz-nos perder de vista a visão do todo.

Foi um pouco esta a experiência que fiz enquanto deixava as palavras deste texto fluirem. Mas, a um dado momento, dei-me conta de que não é o zumbido das moscas que nos desvia da escolha da contemplação, mas o desejo forçado de perfeição.

Quando acolhemos o imperfeito e desvalorizamos o que não interessa, o voo das moscas começa, gradualmente, a fazer parte da paisagem e o zumbido parte do silêncio natural melódico de um momento de pausa imerso na natureza.

Para dizer a verdade, já devia estar habituado desde que, ultrapassando os 40, como míope, as moscas começaram a fazer parte do meu campo de visão quotidiano. Lembro-me no Verão passado como o primeiro embate com essa realidade me levou a viver a ansiedade de não saber o que se passava. Quando compreendi, aceitei e descobri que o segredo era focar a visão no todo, acolhendo a imperfeição da parte.

Penso que será sempre assim na história da humanidade. Por mais tecnologia que criemos para superar o natural com o artificial com o desejo de perfeição, perderemos a sabedoria proveniente do encontro com a imperfeição natural. Aquela que nos leva a descobrir a vulnerabilidade da nossa espécie na narrativa universal. E, ao mesmo tempo, a grandeza das pequenas coisas.

Queria contemplar o vale, mas acabei por contemplar o universo interior que dá sentido e significado ao olhar.


Miguel Oliveira Panão

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