A resposta em título é de Eleazar. Conhecem-no?!... Não puxem mais pela cabeça, ele não faz parte do plantel do Sporting, nem do Maria da Fonte, nem do Benfica ou do Courense, muito menos do Estrela de Portalegre, do Barrancos ou do Calheta. Tampouco era um apanha bolas suplente ao lado do retângulo do Porto. Coitado, já faz muito tempo que morreu numa competitiva final contra terríveis adversários! Mas sempre foi um grande atleta nos jogos da vida e não se atirava para o chão a fingir obstrução em busca de ganhos para si e castigo para os outros. Conhecedor profundo das regras do jogo, tornou-se um dos mais valorosos de entre os melhores do seu tempo. Tendo chegado a idade avançada, os seus colegas e amigos de longa data - uns arranjistas, aliás! -, viraram a casaca, trocaram de clube ou fingiram que sim, tal como aqueles que vestem a camisola dum clube mas pagam as cotas a outro. Pois aqueles ditos cujos, em dada altura, quiseram rasteirar Eleazar para o desequilibrar e estatelar no relvado. Chamaram-no à parte, açucararam o palavreado, aliciaram-no a mudar de cor clubística. Perante a sua relutância em tal proposta, insistiram em que, se quisesse continuar selecionado e salvar a pele, pelo menos teria de fingir que cumpria o que lhe era mandado. Só assim, o presidente ao tempo, um tal Epifânio de nome, e seus assanhados treinadores não o expulsariam do jogo da vida à paulada e coisa mais mortífera. Eleazar, porém, não foi em cantigas, manteve-se forte e firme. Com serenidade e a garra habitual, deu uma resposta de atleta experimentado e leal, digna de cabelos brancos. Fingir, para ele, não passaria de uma mentira, seria uma demissão, uma cobardia, um mau exemplo. Tendo presente que o valor humano se mede, não tanto pela duração da vida, mas sim pela integridade do testemunho, ele ripostou que não o faria. Se o fizesse, até os mais velhos pensariam que ele, um velho de noventa anos chamado Eleazar, perdera o juízo. Seria enganar terceiros e só ganharia desprezo. Além disso, ele estava consciente de que, mesmo que, no presente, se livrasse do castigo humano, nem vivo nem morto conseguiria escapar das mãos do Autor das regras a quem sempre permaneceu fiel nos jogos da vida. Por isso, dizia, “se eu passar corajosamente para a outra vida, mostrar-me-ei digno da minha idade. Para os mais jovens, posso deixar um exemplo honrado, mostrando como se deve morrer corajosa e dignamente” (cf. 2Mac 6, 18-31).
Aos olhos de muitos, toda esta fidelidade pode não passar de uma tontice, uma loucura, um escândalo, um fanatismo. Convido o leitor a escutar o autor do Livro da Sabedoria: “As almas dos justos estão na mão de Deus, e nenhum tormento os atingirá. Aos olhos dos insensatos parecem ter morrido; a sua saída deste mundo foi considerada uma desgraça e a sua partida do meio de nós, um aniquilamento. Mas eles estão em paz. Aos olhos dos homens eles sofreram um castigo, mas a sua esperança estava cheia de imortalidade. Depois de leve pena, terão grandes benefícios, porque Deus os pôs à prova e os achou dignos de si (Sb 3,1-15).
Logo que Jesus se apresentou entre nós como Caminho, Verdade e Vida e nos ensinou a linguagem da cruz, aquela linguagem que o mundo despreza e acha sem valor, mas que confunde os sábios e os fortes deste mundo, dá-se um caso interessante que torno presente. Natanael era um estudioso da Lei, um sábio do tempo, não arrogante nem fechado no que sabia, mas um homem sincero e humilde que buscava a verdade e esperava o Messias do qual as Escrituras, que ele conhecia muito bem, falavam que haveria de vir. Um dia, Filipe cruzou-se com Ele e dá-lhe a notícia de que tinha visto o Messias, que era de Nazaré, que era filho de José. Natanael, como bom judeu e aberto à novidade, mas também, conforme a cultura do tempo preconceituoso em relação à pequenina terra de Nazaré, como que mete um travão na confiança que Filipe manifestava nesse Messias. E interpela-o, sério: “De Nazaré pode vir alguma coisa boa?”. Filipe, porém, não desiste do amigo Natanael, convida-o e acompanha-o ao encontro de Jesus para ambos partilharem essa boa notícia. ‘Anda daí, pá, e verás’, e lá foram!... Quando Jesus olhou Natanael, elogiou a sua honestidade e autenticidade, dizendo: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não existe fingimento” (Jo 1, 45-51). Natanael, admirado por Jesus o conhecer, o acolher e lhe prestar tanta atenção, fica sensibilizado pelo apreço que Jesus lhe manifesta, pelo que lhe diz, e logo se sente interiormente apanhado e desarmado pela pessoa de Jesus sobre o qual imediatamente proclama: “Rabi, Tu és o Filho de Deus, Tu és o rei de Israel” (Jo 1, 49). A partir dali, começou a fazer parte do grupo dos amigos de Jesus, entrou na sua escola. Estava ateado o fogo do amor no coração de Natanael, tornou-se um verdadeiro apóstolo da verdade e da justiça, tarefa das pessoas de boa vontade. E se a fama de Jesus se espalhava cada vez mais por toda a parte (Lc 5, 15), continuará a espalhar-se com a palavra e o testemunho de pessoas que, tal como Filipe, sejam capazes de partilhar a alegria de ver e experimentar a amizade de Jesus. Pessoas que saibam convidar os outros ao seu encontro, anunciando, com ternura e beleza, a pessoa e a linguagem da cruz que Jesus nos ensinou, bem como a jubilosa alegria e as dinâmicas que explodiram sobre o mundo com a sua Ressurreição. Mesmo que tudo possa continuar a ser loucura para uns e escândalo para outros, mesmo que tudo isso possa continuar a confundir os sábios e os poderosos deste mundo, só Jesus Cristo redime, salva, liberta, dá sentido à vida e às coisas da vida. Só Ele é o alicerce, a pedra angular sobre a qual assenta a construção de um mundo cada vez mais justo e intelectualmente habitável, com a colaboração de todas as pessoas de boa vontade em todas as áreas do saber, do ter e do poder. “A loucura de Deus é mais sábia do que os homens e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (cf. 1Cor 1, 17-31).
Mesmo que as causas da indiferença ou do voltar de costas ao autor dos cosmos e da vida possam ser muitas e diversas, o Papa Francisco lembra-nos que o Diabo anda por aí, finge-se “educado”, toca à campainha delicadamente, com diplomacia, pede licença para entrar, entra, observa, faz-se amigo, seduz à infidelidade entre esposos, destrói famílias, alicia aos vícios e à corrupção, torna as pessoas voláteis, canas agitadas pelo vento, tudo apresenta como se tudo fosse digno, bom e permitido. De forma empática e suave, cativa para logo empurrar com aplausos e grande festa para “o espírito do mundo que nos arruína e corrompe a partir de dentro».
Eleazar resistiu a tais ciladas, foi perseguido e morto pela sua fidelidade a Deus. Cristo Jesus ressuscitado, eternamente vivo e presente, continua a ser perseguido e morto. Armam-lhe ciladas, pedem-lhe que se afaste, entregam-no aos inimigos, condenam-no à morte, os barrabás e toda a pilataria têm preferência. Quando Paulo respirava ameaças e morte contra os cristãos e se encaminhava para Damasco para os prender e trazer para as prisões e morte, Jesus fez-se encontrado, e perante a pergunta de Paulo sobre quem é que Ele era, Jesus responde-lhe: “Eu sou Jesus a quem tu persegues” (At 9, 5). O “que fizerdes aos outros é a mim que o fazeis” (cf. Mt 25, 45). Tal como Eleazar, os cristãos perseguidos em tantos lugares do mundo continuam a testemunhar que são pessoas de antes quebrar que torcer. Eles sabem em quem acreditam e confiam. O seu comportamento é forte estímulo para nós, até nos envergonha por tão frios que podemos ser na formação, na prática, na vivência e no anúncio da fé!
D. Antonino Dias - Bispo Diocesano
Portalegre-Castelo Branco, 08-10-2021.
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