sábado, 30 de março de 2024

CONTEMPLAR O CRUCIFICADO

 


Não há nenhuma dor humana, nenhuma, que não tenha expressão no sofrimento daquele crucificado.



A morte de Jesus permanece na paisagem do mundo como um sinal escancarado, capaz de falar com emoção a todos, crentes e não-crentes. Os evangelhos descrevem essa morte — a morte de um inocente — com um vocabulário despojado de elucubrações teológicas, atendo-se sem mais ao drama que se abate sobre aquela vida, como o poderíamos talvez encontrar lendo as páginas de um jornal. Relata-se o julgamento previamente decidido entre as autoridades em conluio, a solidão do condenado, a desvalorização impiedosa que lhe é imposta pela tortura e chistes que recebe dos soldados, o insuportável espetáculo da sua dor no caminho do calvário, até ao grito final que continua ainda a ecoar na história, e que em algum momento todos os viventes repetem como seu: “Meu Deus, meu Deus porque me abandonastes?” Sem deixar de lado alguma informação significativa sobre o que essa morte imediatamente desencadeia: a desmobilização dos discípulos atordoados, a solidariedade corajosa de alguns anónimos, as lágrimas das mulheres assistindo àquilo, a presença frágil e inabalável da mãe do crucificado encarnando o que a poeta russa Anna Akhmátova escreve: “O destino de uma mãe ilumina-se na tortura.”
A própria liturgia cristã, no dia de sexta-feira santa, abdica da sua forma habitual para contemplar, da forma mais nua, o silêncio que a morte de uma vítima impõe. É o dia em que se suspende a celebração da eucaristia: os crentes reúnem-se para ler o relato da paixão e cair de joelhos perante a cruz. Apenas isso. E porquê? Porque talvez só o radical silêncio seja a oração possível. Talvez esse extremo, ardente e radical silêncio seja o hífen que avizinha os seres humanos entre si, para lá de todas as barreiras, e os coloca misteriosamente no espaço de Deus.

A fé de sexta-feira santa formula-se não como uma resposta, mas como pergunta intransigente e inapagável, aquela que o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen assim enuncia:


“Vimos o mundo aceso nos seus olhos
E por os ter olhado nós ficámos
Penetrados de força e de destino.

Ele deu carne àquilo que sonhámos,
E a nossa vida abriu-se, iluminada
Pelas paisagens de oiro que ele vira,

Veio dizer-nos qual a nossa raça,
Anunciou-nos a pátria nunca vista,
E a sua profissão era o sinal
De que as coisas sonhadas existiam.

Vimo-lo voltar das multidões
Com o olhar azulado de visões
Como se tivesse ido sempre só.

Tinha a face orientada para a luz,
Intacto caminhava entre os horrores,
Interior à alma como um conto.

E ei-lo caído à beira do caminho,
Ele — o que partira com mais força
Ele — o que partira pra mais longe.

Porque o ergueste assim como um sinal?
Pusemos tantos sonhos em seu nome!
Como iremos além da encruzilhada
Onde os seus olhos de astro se quebraram?”

Ajudam-nos a tatear no escuro as palavras do poeta Paul Claudel: “Cristo não nos foi enviado para explicar a dor, mas para enchê-la da sua presença.” De facto, não há nenhuma dor humana, nenhuma, que não tenha expressão no sofrimento daquele crucificado. Não há solidão ou experiência de abandono que não possam ser aproximados do abandono em que Jesus morreu. A escritora Marguerite Yourcenar conta que um amigo, que tinha combatido na guerra da Indochina, lhe terá dito: “Se Jesus tivesse morrido fuzilado em vez de crucificado, eu acreditaria nele.” Ora, Jesus morreu crucificado, mas também fuzilado, também num canto da estrada, num pelotão de fuzilamento, numa cadeira elétrica, numa cama de hospital. Ele morre a morte de todas as vítimas da história. Se há uma palavra que define a sua Paixão, essa é: solidariedade.

[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2319 | 08/04/17]



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