Somos pessoas, seres de relação, de comunicação e comunhão. Fomos criados para ser com, por e para os outros. E de forma aberta e dinâmica, com sentimentos, vontade e inteligência. Sendo cada um cada qual, ninguém pode ser em vez de mim. Eu não posso ser em vez de ninguém. Todos iguais, todos diferentes, cada um com a sua pancada, acrescenta o povo com humor. Para bem viver e conviver, dizemo-nos, aprendendo com todos e com tudo, de forma grata e feliz. No entanto, mesmo sendo sensatos no que se diz, é difícil saber o impacto positivo ou negativo que as palavras podem causar nas pessoas que as ouvem ou leem. Não sabemos se as entendem, se as destorcem, se as motiva, se as enerva, se as baralha, se as esclarece, se lhe são úteis, se as fazem refletir, rir ou chorar, se as tiram do sério, se as leva a considerar tagarela demais a pessoa que as disse ou a toma como pessoa sensata a desejar ouvi-la mais vezes. O povo diz que as palavras as leva o vento, sobretudo quando quem fala fala ao sabor das modas, como cata-vento, inconstante, frei Tomás, sem fidelidade à palavra dada.
Há, porém, uma palavra que não é nossa, foi-nos dada com amor e com amor é-nos feita caminho. Quem a proferiu é fidelíssimo a si mesmo e ao que diz, não anda, de todo, ao sabor das ventanias como ao sabor das ventanias podemos andar aqueles a quem essa palavra se dirige. Trata-se da Palavra de Deus exprimida por palavras humanas. “Deus invisível, na riqueza do seu amor, fala aos homens como a amigos e convive com eles, para os convidar a admitir a comunhão com Ele” (DV2). Esta Palavra, graças à ação do Espírito Santo, revela a natureza filial e relacional da nossa vida. Capacita-nos para a escutar e lhe responder. Nestes diálogo, compreendemo-nos a nós mesmos e encontramos respostas para perguntas que nos fazemos.
É uma palavra eterna, mas sempre jovem e atual. Nunca ultrapassada, nunca vazia de sentido. Não envelhece, não passa de moda, não cansa, não ofende, não se esgota, não morre. É viva e dá vida, é eficaz e interpela. Anima, consola, sensibiliza, exorta, corrige, fortalece, orienta, gera alegria. Leva cada um a renunciar a si próprio e a projetar-se nos outros, a bem-fazer, a ser útil, com humildade e persistência. Quanto mais a lemos mais dela tiramos proveito, nunca se esgota e é sempre novidade a iluminar a existência humana! Penetrando e exprimindo-se em culturas e línguas diferentes, transfigura os limites de cada uma dessas culturas criando comunhão entre povos diversos, numa universalidade que nos vincula a todos, a todos nos une e faz irmãos (cf. VD116).
A Quaresma diz-nos que não há espiritualidade cristã, viva e autêntica, sem um relacionamento cada vez maior com a Palavra de Deus. Palavra definitiva sobre o universo e a história. Uma palavra que deve ser proclamada, escutada, lida, acolhida, meditada, celebrada e traduzida em atitudes de vida.
Santo Efrém, um diácono do século IV, perguntava-se: “Quem poderá compreender, Senhor, toda a riqueza de uma só das vossas palavras? Como o sedento que bebe da fonte, muito mais é o que perdemos do que o que tomamos”. E acrescentava: “A palavra do Senhor apresenta aspetos muito diversos, segundo as diversas perspetivas dos que a estudam. O Senhor pintou a sua palavra com muitas cores, a fim de que cada um dos que a escutam possa descobrir nela o que mais lhe agrada. Escondeu na sua palavra muitos tesouros, para que cada um de nós se enriqueça em qualquer dos pontos que medita. A palavra de Deus é a árvore da vida, que de todos os lados oferece um fruto bendito, como a rocha que se abriu no deserto, jorrando de todos os lados uma bebida espiritual. Comeram, diz o Apóstolo, uma comida espiritual e beberam uma bebida espiritual. Aquele que chegou a alcançar uma parte deste tesouro, não pense que nessa palavra está só o que encontrou, mas saiba que apenas viu alguma coisa de entre o muito que lá está. E porque apenas chegou a entender essa pequena parte, não considere pobre e estéril esta palavra; incapaz de apreender toda a sua riqueza, dê graças pela sua imensidade inesgotável. Alegra-te pelo que alcançaste, e não te entristeças pelo que ficou por alcançar. O que tem sede alegra-se quando bebe, e não se entristece por não poder esvaziar a fonte. Vença a fonte a tua sede, e não a tua sede a fonte, porque se a tua sede fica saciada sem que se esvazie a fonte, poderás ainda beber dela quando voltares a ter sede; se, ao contrário, saciada a sede, secasse a fonte, a tua vitória seria a tua desgraça. Dá graças pelo que recebeste e não te entristeças pelo que sobrou e deixaste. O que recebeste e alcançaste é a tua parte, e o que deixaste é ainda a tua herança. O que não podes receber imediatamente por causa da tua fraqueza, poderás recebê-lo noutra altura, se perseverares. E não tentes avaramente tomar dum só fôlego o que não podes abarcar duma vez, nem desistas, por preguiça, do que podes ir conseguindo pouco a pouco”.
Descobrir a centralidade da Palavra de Deus na vida cristã, ser seus conhecedores e anunciadores credíveis, gerando comunhão e alegria, é um desafio constante.
D. Antonino Dias . Bispo Diocesano
Portalegre-Castelo Branco, 01-03-2024.
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