Neste texto, outra coisa não faço senão aguçar o apetite do leitor para ler uma carta que o Papa Francisco publicou em 17 de julho sobre a importância da literatura na educação, apelando ele à leitura “de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal”. Vou fazê-lo sem comentários, mas apenas fazendo sobressair algumas das suas afirmações, na esperança de suscitar que a Carta seja procurada e lida.
Afirma Francisco que, muitas vezes, “no tédio das férias, no calor e na solidão dos bairros desertos, encontrar um bom livro para ler torna-se um oásis, afastando-nos de outras escolhas que são nocivas. Na verdade, não faltam momentos de cansaço, irritação, desilusão, fracasso e, quando nem sequer na oração conseguimos encontrar o sossego da alma, pelo menos um bom livro ajuda-nos a enfrentar a tempestade, até que possamos ter um pouco mais de serenidade. Talvez essa leitura abra novos espaços interiores, capazes de evitar o encerramento naquelas poucas ideias obsessivas que nos enredam inexoravelmente. Antes da omnipresença dos media, das redes sociais, dos telemóveis e de outros dispositivos, esta era uma experiência frequente, e quem a viveu sabe bem do que estou a falar. Não se trata de algo ultrapassado”.
Refere Francisco que o leitor “é muito mais ativo quando lê um livro” do que quando está diante dos meios audiovisuais, pois, de certo modo, “reescreve-o, amplia-o com a sua imaginação, cria um mundo, usa as suas capacidades, a sua memória, os seus sonhos, a sua própria história cheia de dramatismo e simbolismo; e assim surge uma obra muito diferente daquela que o autor pretendia escrever. Uma obra literária é, portanto, um texto vivo e sempre fértil, capaz de falar de novo e de muitas maneiras, capaz de produzir uma síntese original com cada leitor que encontra. Este, enquanto lê, enriquece-se com o que recebe do autor, mas isso permite-lhe, ao mesmo tempo, fazer desabrochar a riqueza da sua própria pessoa, pois cada nova obra que lê renova e expande o seu universo pessoal”.
Francisco confessa que gosta “muito dos artistas das tragédias, porque todos podemos sentir as suas obras como nossas, como a expressão dos nossos próprios dramas. No fundo, ao chorar o destino das personagens, estamos a chorar por nós mesmos: o nosso vazio, as nossas falhas, a nossa solidão. Naturalmente, não estou a pedir para fazerdes as mesmas leituras que eu fiz. Cada um encontrará os livros que falarão à sua própria vida e que se tornarão verdadeiros companheiros de viagem. Não há nada mais contraproducente do que ler por obrigação, fazendo um esforço considerável só porque alguém disse que é essencial. Não, devemos selecionar as nossas leituras com abertura, surpresa, flexibilidade, orientação, mas também com sinceridade, tentando encontrar o que precisamos em cada momento da vida”.
Afirmando o Concílio vaticano II que 'a literatura e as artes […] procuram dar expressão à natureza do homem' e 'dar a conhecer as suas misérias e alegrias, necessidades e energias”, como será possível, pergunta o Papa, como será possível “alcançar o núcleo das culturas antigas e novas se ignorarmos, descartarmos e/ou silenciarmos os símbolos, mensagens, criações e narrativas com que se captaram e se quiseram mostrar e evocar os seus feitos e ideais mais belos, tal como as suas violências, medos e paixões mais profundas? Como falar ao coração dos homens se ignorarmos, relegarmos ou não valorizarmos “essas palavras” com que quiseram manifestar e, porque não, revelar o drama do seu viver e sentir através de romances e poemas? A missão eclesial soube desenvolver toda a sua beleza, frescura e novidade no encontro com diversas culturas – e muitas vezes graças à literatura – nas quais se enraizou, sem medo de arriscar e de extrair o melhor daquilo que encontrou”. A literatura “inspira-se na quotidianidade vivida, em suas paixões e acontecimentos reais, como "a ação, o trabalho, o amor, a morte e todas as pobres coisas que enchem a vida".
Muitos cientistas “afirmam que o hábito de ler produz muitos efeitos positivos na vida de uma pessoa: ajuda-a a adquirir um vocabulário mais vasto e, consequentemente, a desenvolver vários aspetos da sua inteligência; estimula também a imaginação e a criatividade; simultaneamente, permite que as pessoas aprendam a exprimir as suas narrativas de uma forma mais rica; melhora também a capacidade de concentração, reduz os níveis de deficit cognitivo e acalma o stress e a ansiedade. Mais ainda: prepara-nos para compreender e, assim, enfrentar as várias situações que podem surgir na vida. Ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida, ou talvez, durante a leitura, demos às personagens conselhos que mais tarde nos servirão a nós mesmos”.
A dor ou o tédio que se sentem ao ler certos textos “não são necessariamente sensações más ou inúteis. O próprio Inácio de Loyola tinha observado que, 'naqueles que vão de mal a pior', o bom espírito age causando inquietação, agitação, insatisfação. Esta seria a aplicação literal da primeira regra inaciana do discernimento dos espíritos, reservada àqueles que 'vão de pecado mortal em pecado mortal', ou seja, nessas pessoas a ação do bom espírito «punge-lhes e remorde-lhes a consciência pelo instinto da razão», para as conduzir ao bem e à beleza”.
O ato de ler é, pois, “como um ato de ‘discernimento’, graças ao qual o leitor é implicado na primeira pessoa como “sujeito” da leitura e, ao mesmo tempo, como ‘objeto’ do que lê. Ao ler um romance ou uma obra poética, o leitor experimenta efetivamente ‘ser lido’ pelas palavras que vai lendo. Deste modo, o leitor é semelhante a um jogador em campo: faz acontecer o jogo, ao mesmo tempo que o jogo acontece através dele, na medida em que está totalmente envolvido naquilo que faz”.
Ao lermos um texto literário, “colocamo-nos na condição de 'ver com os olhos dos outros', adquirindo uma amplitude de perspetiva que alarga a nossa humanidade. Isto ativa em nós o poder empático da imaginação, que é um veículo fundamental para essa capacidade de identificação com o ponto de vista, a condição, o sentimento dos outros, sem a qual não há solidariedade, partilha, compaixão, misericórdia. Ao ler, descobrimos que o que sentimos não é só nosso, é universal, e, por isso, até a pessoa mais abandonada não se sente só”.
D. Antonino Dias . Bispo Diocesano
Portalegre-Castelo Branco, 23-08-2024.
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