quarta-feira, 22 de março de 2017

O dom da fragilidade




À humanidade, corresponde uma grandeza própria, grandeza ontológica, a nada redutível: o ser humano não é redutível a uma coisa entre as outras, não é redutível a uma forma de vida entre as outras, não é redutível a algo como a cidadania, não é, sequer, redutível a uma mera «criatura de Deus», se por tal se entender que na relação com Deus se esgota toda a grandeza propriamente humana. Neste último caso, o ser humano e Deus seriam confundíveis, dado que o ato do ser humano poderia ser, precisamente, reduzido ao ato de Deus. O que se afirmou para este último caso é paradigma de análise para todos os outros anteriormente elencados, bem como para quaisquer outros evocáveis. Outro modo de dizer isto é afirmar que nem Deus nem o ser humano teriam realidades próprias, precisamente irredutíveis. Ora, a criação consiste exatamente na outorga da radical diferença identitária do criado relativamente ao criador. Não entender isto é não entender coisa alguma de fundamental em termos da ontologia e metafísica cristãs ou, em âmbito não religioso, não entender a irredutibilidade ontológica de uns seres relativamente aos outros, quaisquer sejam, o que, no limite, tem como corolário algo de semelhante às teorias que suportaram aberrações onto-antropológicas como o nazismo, em que tudo era redutível, em última instância, à objetividade subjetiva da vontade do tirano.

Esta irredutibilidade ontológica, onto-antropológica, significa que há uma realidade própria do ser humano que é inalienável, sob pena de imediata aniquilação de isso que constitui ontologicamente quer cada ser humano individualmente considerado quer a humanidade como um todo, humanidade já havida, humanidade presente em histórico ato e humanidade a haver, em toda a sua imensamente rica diferencialidade e diferença real, concreta.

Desta grandeza propriamente humana faz parte quer a sua atualidade propriamente física quer a sua atualidade propriamente metafísica. Note-se que não estamos a falar de algo como a nefasta dualidade «corpo-alma», mas do que constitui a ontologia integral do ser humano, que não pode dar-se sem uma dimensão física – não confundir com corpórea, que em muito transcende o «físico» – e sem uma dimensão metafísica.

Para que tal se entenda, vamos recorrer a um exemplo negativo: há uma diferença abissal entre uma pessoa – termo que usamos como sinónimo de ser humano – e um cadáver. Este último é simplesmente matéria, isto é, realidade física, puramente física, meramente física, pelo menos se não tivermos em consideração que qualquer forma implica uma estrutura quer lógica quer matemática, ambas metafísicas, dado que não se encontram na natureza, antes a precedem como absoluto de possibilidade precisamente de ordem, de forma.

O que está em causa no cadáver é não a sua relação com a formalidade física, mas a sua relação com a formalidade humana: o cadáver não tem forma humana, mesmo que guarde aspeto humano.
A forma humana é dada pelo corpo, que é algo de vivo, logo, em que há uma forma especial, espiritual, capaz de intuição de realidades propriamente metafísicas, capaz de sentido, algo que é sempre da ordem do metafísico.

Não há «sentido físico», o que pode haver – e há, quando há – é a presença de sentido acerca do físico nisto que é o ser humano como ato, precisamente, de sentido, como ente metafísico. Nada de físico é capaz de sentido (a menos que estejamos em ambiente leibniziano, que é, sempre metafísico, resolvendo o problema logo à partida).
No ser humano, como ser humano, tudo se joga em termos de sentido, em termos metafísicos, sem esta dimensão, não há ser humano, há um cadáver, que é um simples pedaço de inerte matéria.

Esta distinção é dura, mas é fundamental. Muito do que de equívoco se vai afirmando acerca do ser humano depende desta confusão e da redução do ser humano a um cadáver animado, a uma coisa material que pensa. Ora, a materialidade não pensa: é a pessoa que pensa usando todos os recursos de que é constituída, dimensão física incluída.

É o espírito que pensa o físico, é o espírito que pensa a chamada «matéria», realidade cuja definição própria se desconhece – existem definições funcionais, como para a energia, seu outro modo de ser.

Deste ponto de vista, não há coisa alguma na ontologia do ser humano que não seja positiva. A realidade humana universal aparentemente mais negativa, a humana incompletude ou finitude não é um dado negativo, mas a possibilidade de engrandecimento como ato próprio de cada pessoa e da humanidade como um todo.



Não ser perfeito implica poder ser perfeito.

Se se fosse perfeito não se poderia ser perfeito, pois a perfeição estaria dada. Mas, se a perfeição estivesse dada, o ser humano seria um simples dado, sem qualquer possibilidade própria a apropriar, consequentemente, sem qualquer mérito próprio.

É a imperfeição, como possibilidade e vocação para uma possível perfeição, que constitui o modo próprio ontológico do ser humano como autoconstrutor possível de si próprio, como poeta possível do seu próprio poema, em coincidência possível e atual com este, assim se poetize. O ser humano é um ser autopoético. A vida humana é um poema próprio; a vida humana é um poema recíproco. O poema próprio constitui o domínio da ética. O poema recíproco constitui o domínio da política. Todos são domínios onto-poéticos humanos, logo, antropo-onto-poiéticos.

Deste ponto de vista, toda a potencialidade ontológica positiva humana é um bem. Deste mesmo ponto de vista, a grande potencialidade humana é dada pelo rasgo de possibilidade que é a imperfeição como possibilidade de aperfeiçoamento.
Ora, a fragilidade humana faz parte deste rasgo de horizonte possível, porque a fragilidade humana não é sinal ou sintoma de algo de errado, mas a própria condição humana como ente em aperfeiçoamento possível e, porque possível, sempre periclitante.

É o caráter periclitante do nosso ato que constitui problema, não a nossa fragilidade, que é sinónimo do que somos desde que somos concebidos até que morremos, altura em que a periclitância mundanamente é aniquilada ou transcendentemente é metamorfoseada em algo de radicalmente diferente, em que a lógica do movimento e do tempo associado desaparece, passando a vigorar a lógica do eterno, em que algo como a periclitância não faz qualquer sentido.

A fragilidade não é, pois, um mal, mas um bem, significando a nossa condição de itinerantes sempre sobre o fio de uma navalha – que é a do sentido – sobre que temos de caminhar, equilibrando-nos sobre a linha de gume, que só nos dilacera se dela delirarmos, isto é, se nos perdemos como sentido, se não formos capazes de viver plenamente isso que é a nossa possibilidade própria, seja ela qual for.

Para esta possibilidade absolutamente uni-pessoal não há modelo algum. O modelo de possibilidade ontológica para a humanidade é constituído precisamente pela radical pessoalidade da vida de cada ser humano: nunca o que foi ou é bom para um é exatamente bom para qualquer outro. A poética da vida humana é sempre uma possibilidade e uma vocação de absoluta originalidade. A humanidade ergue-se sobre o duplo assento ontológico da comunidade específica e da diferencialidade individual, sendo que a comunidade específica mais importante é a que implica inexoravelmente a diferença individual: o ser humano é radicalmente diferente na sua individualidade, constituindo cada ser humano, como entidade de sentido, algo analogável a um mundo próprio, separado em si mesmo e absolutamente autónomo como tal.

É esta autonomia que constitui o que tradicionalmente se chamava «incomunicabilidade ontológica», que implica que cada ser humano seja, segundo o ser, totalmente incomunicável com todos os outros, pois cada parte sua é totalmente pessoal e própria, não podendo ser transferida para outro ser humano (não nos referimos a partes corporais, mas, mesmo essas, têm diferenças ontológicas próprias que têm de ser anuladas, sob pena do que chama de «rejeição»).

Deste modo, lidar com a «fragilidade humana» não é algo de especialmente próprio de certos trabalhos, mas o modo comum de as pessoas se relacionarem: todos nós nos relacionamos com as nossas fragilidades, pois todos somos frágeis e não há modo algum de afastar as fragilidades quando partimos para qualquer relação, humana ou outra, por exemplo, com o próprio Deus.

Não é a comum fragilidade humana que é problemática, pois é transcendental, isto é, comum a toda a humanidade, mas certas formas de especial fragilidade humana. No seio destas, especialmente as que põem em causa, mediata ou imediatamente, quer a vida humana quer o sentido humano. Estas duas expressões dizem, de modos diferentes, a mesma realidade. Esta realidade é a relação do ser humano com a possibilidade não da sua morte, que é tema tão variado quanto os passíveis de morrer – todos nós –, mas da sua aniquilação, isto é, da sua redução a nada, a coisa nenhuma.

É a fragilidade na relação com a aniquilação – seja esta relação vivida de forma intuitivamente clara (em consciência) seja vivida de forma não-clara – que constitui problema e que reclama a ajuda, por exemplo, quer dos que exercem funções de capelania hospitalar – seja qual seja a religião – quer dos que prestam outras formas de ajuda ou assistência espiritual, sempre tarefas de inexcedível mérito humano, se realizadas na máxima perfeição do que a própria fragilidade dos cuidadores permite.

Em última instância, quem esteja numa situação-limite de periclitância de vida, inevitavelmente conducente à morte – como é o caso dos vários tipos de doença terminal (moribundos) – pode estar numa situação de sentido em que todo o seu ser coincida com o ato de transe em que se encontra, em estado de ativa aceitação da conclusividade da vida, estando, como se costuma dizer – e bem –, em paz.

Tal pessoa pode não necessitar de especial cuidado espiritual para lá do que representa o testemunho da presença de um outro ou de outros seres humanos, apenas como afirmação de não-abandono ativo, isto é, de amor.

Para esta pessoa, por parte do capelão ou de um outro assistente espiritual, poderá bastar sempre um simples «bom dia!», que celebra a comum humanidade como ato de amor na forma, ainda que breve, da presença de um ser humano que se preocupa e, assim, se ocupa de outro. Em termos cristãos, lembremo-nos de Maria aos pés da cruz e do que tal deve ter significado para o frágil e sofredor Cristo, no entanto em dolorosa paz consigo próprio, com o Pai e com a humanidade.

O mais é absolutamente insignificante, só este amor e esta paz contam. Como ato mínimo, que é, nisso, máximo de cura espiritual esta presença de Maria marca o paradigma do que pode e deve ser feito. Em termos de sentido humano, o absoluto da presença é algo de divino, pois cumpre, na perfeição da possibilidade da humana universal fragilidade, o que tem de ser feito como auxílio espiritual ao que sofre de morte, ao que pode estar mesmo à beira do desespero.

Pense-se bem: como pode ter alguma esperança esse que está, melhor, é, porque é essa a intuição que tem, abandonado por todos? Como, sequer, crer em Deus ou em Deus esperar, no caso de Deus, como em Job quase até ao fim e como na Paixão de Cristo até ao fim, se mantiver ausente?

A resposta é dada precisamente nestes mesmos dois textos: nestes casos, é a presença transcendental de Deus como forma memorial coincidente com o que de mais profundo ontologicamente há no ser humano que permite não desesperar. Mas, tão funda é esta presença que é preciso mergulhar no mais profundo de cada um para a descobrir. E se não se for capaz de mergulhar, por variadíssimas razões circunstanciais, tão fundo?

No primeiro caso, no caso dos que encontram a presença memorial de Deus em si, é este encontro que lhes permite resistir, não a Deus ou à vida, mas à possibilidade do desespero. São estes os que encontram em si a paz e a aceitabilidade e aceitação plena da vida, de que a morte é parte inalienável. Estes são aqueles que não precisam de mais do que a tal saudação marcante da presença humana. Que é um simples bálsamo, não uma cura, de que, espiritualmente não necessitam, pois já a possuem. Muitas vezes são estes moribundos quem ainda consola os que, em vão, os querem consolar. O caso mais famoso é o do próprio velho Sócrates de Atenas que, estando em processo de morte, consola os amigos, lhes incute palavras de ânimo, lhes fala de um horizonte de bondade e de beleza sem ocaso.

No segundo caso, no mais profundo da estrutura ontológica do ser humano, estrutura onto-antropológica – que recebe e assume em Cristo a sua plenitude, também como possibilidade de dor e de sofrimento –, encontra-se não uma memória, não uma relação indireta e, de algum modo, representativa-representacional – que é o que memória é –, mas algo de seminal, de ontologicamente transcendental – precisamente porque presença inalienável na ontologia universal humana – e que é a presença de Deus como correlativo do ato de cada pessoa humana, de forma providencial-criadora no comum ser humano, de forma consubstancial em Cristo, consubstancialidade que, assim, é imediatamente paradigma da grandeza da relação de Deus com a criatura humana, que, não sendo cossubstancial a Deus, lhe é ontologicamente correlativa, no que se costuma chamar de imagem e semelhança.

Repare-se que é precisamente esta relação, absoluta ontologicamente como ato sem o qual nada é – e isto é o sentido profundo da providência –, mas frágil no que ao lado humano da relação respeita, pois, basta um simples não do ser humano a Deus para que tudo seja como se tal relação providencial não existisse.

É este não que é, sempre, o pecado, constituindo a sua forma universal. Não há outra forma. No entanto, é esta mesma relação, na fragilidade da parte humana, que constitui a possibilidade de liberdade e concomitantemente a impossibilidade de algo como um panteísmo intra-antropológico: Deus, na sua e pela sua relação como o ser humano, não substitui este, muito menos o anula. É o ser humano que tendencialmente se anula através do não a Deus, através do pecado. Mas a anulação, a aniquilação, é apenas um limite lógico, dado que a relação de Deus para com a pessoa humana nunca é simétrica da relação da pessoa humana para com Deus, sendo que esta última nunca é negativa, embora possa ser suspensa pelo não do ser humano. Esta suspensão pode ser anulada, a qualquer momento por um sim a Deus. Espantosa relação esta, que recebe foros de semelhança – dado que é paradigmática de – por parte de todas as possíveis relações humanas, simplesmente inter-humanas.

Como modelo paradigmático de fragilidade plena, de dor e de sofrimento, enquanto possibilidade e enquanto concretização, da pessoa humana, o ato complexo da entrega final de Cristo é a manifestação, mostração, aliás, inequívoca, do que é a possibilidade universal do sofrimento e da dor, tendo como lugar ontológico a fragilidade humana.

A fragilidade humana não é, assim, algo de moral, de político, de psicológico, de físico: é o modo de ser da ontologia humana, sempre à beira de um abismo de possível tragédia, em que o ser humano pode perder-se «como sentido». Há que perceber que o ser humano nada mais é do que este «logos» próprio, ato de sentido que o ergue como entidade propriamente humana, em que tudo o que o ser humano é se dá na forma do sentido. Em termos humanos, nada há para aquém ou para além do sentido e as luminosas palavras com que João abre o seu Evangelho, «en arkhe en ho Logos» – «no princípio, era o “Logos”», podem ser aplicadas diretamente ao que é o ato de cada pessoa humana, pois, no seu princípio e no seu fim, bem como no seu «meio», nada mais há do que «logos», sentido.

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (20-03-2017) iMissio

[Américo Pereira| Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas]

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