terça-feira, 16 de maio de 2017

Fátima e o fio que liga o papa Francisco à história


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Naquele ano de 1917, que com o aproximar-se do fim da I Guerra Mundial assinalava o efetivo início histórico do século XX para além do mero início cronológico, em perfeita continuidade com o século XIX liberal e burguês, de 13 de maio a 13 de outubro, em Fátima, três crianças viveram uma extraordinária experiência de escuta e visão da Virgem Maria.

Dela afirmaram ter recebido uma mensagem a transmitir ao mundo, cujo conteúdo era efetivamente de singular alcance profético: nela se anunciavam os grandes acontecimentos do século há pouco iniciado, as terríveis violências que o iriam caracterizar, os totalitarismos cegos que se iriam afirmar, o seu fim, as perseguições aos crentes e o testemunho fiel de muitos deles, culminantes no selo de sangue derramado pelo «Bispo vestido de branco, que reza por todos». Muitos reconheceram em João Paulo II, gravemente ferido no atentado sofrido em 1981, a realização desta profecia. O certo é que um laço especial uniu o papa polaco a Fátima, aonde foi várias vezes [três] como peregrino.

É por isso que gostaria de me aproximar da mensagem daquelas aparições, que a visita do papa Francisco repropôs a todos, partindo de alguns versos de Karol Wojtyla, que evocam intensamente o mundo interior da Mãe de Jesus a partir da hora da anunciação:
«Este momento de toda a minha vida, condensado em verbo,/ convertido na minha carne, alimentado com o meu sangue,/ levado até ao êxtase,/ crescendo no meu coração silencioso/ como um homem acabado de nascer,/ sem suspender o espanto, nem os trabalhos quotidianos.// Este momento, ao atingir o cume, continua a ser inicial,/ encontra-te de novo e apenas me falta uma lágrima/ nas pálpebras para que os raios dos olhares se fundam no ar frio/ e a imensa fadiga encontre luz e sentido».


Só Deus é o Senhor da vida e da história; uma humanidade sem Deus é uma humanidade mais pobre, e não mais livre e feliz; só uma confiança humilde e enamorada ao Senhor assegura esperança para o mundo. É quanto exprimiu com palavras simples a mais velha dos três pastorinhos, a Irmã Lúcia, ao descrever a experiência vivida 


São versos que resumem a vivência de Maria de Nazaré, exprimindo ao mesmo tempo o significado para tudo o que aconteceu nela, com uma intimidade que habita as palavras tornando-as grávidas de uma conversa com ela antiga e constante, feita de escutas, de invocações, de confiança terna e profunda. De tudo isto vem uma luz singular que incide também na peregrinação que levou o papa Francisco, segundo sucessor de João Paulo II, ao lugar onde os três pastorinhos receberam a mensagem, exatamente há um século.

Com efeito, se todas as viagens deste papa têm um significado próprio e original, se aquela recente ao Egito foi o denso compêndio de quanto deve ser dito ao mundo sobre a necessidade do diálogo ecuménico e inter-religioso na ineliminável fidelidade à verdade, esta peregrinação a Fátima no centenário dos acontecimentos que profetizaram o século XX apresenta-se como um tributo de amor pessoalíssimo que o papa «vindo do fim do mundo» quis prestar à Mãe do Senhor. Em Maria, Bergoglio testemunha ter encontrado conforto e ajuda em todas as horas da sua vida, renovando-lhe confiança e amor, tanto nas visitas ao santuário da Virgem de Luján, em Buenos Aires, como à basílica de Santa Maria Maior, em Roma.

A ela Francisco quis entregar o século, cuja chave de compreensão tinha sido oferecida aos três «pequeninos da terra» nas horas dramáticas nas quais, com a aproximação do fim da I Guerra Mundial e a iminente revolução bolchevique, se desvanecia o otimismo liberal do progresso, típico de Oitocentos, e se abria o tempo das grandes crises, dos totalitarismos e das velocíssimas transformações da técnica, o «século breve» (Eric Hobsbawm) das grandes conquistas científicas e mediáticas, do triunfo violento e do não menos traumático declínio das ideologias produzidas pela razão moderna. A biografia de Jorge Mario Bergoglio entretece-se de tal maneira com estes acontecimentos, que o seu tributo à Virgem venerada em Fátima é um reconhecimento solene daquela chave de compreensão do século, que nas aparições foi entregue aos três pastorinhos.

Esta chave é o centro e o coração da mensagem, incansavelmente proclamada pelo papa Francisco. Só Deus é o Senhor da vida e da história; uma humanidade sem Deus é uma humanidade mais pobre, e não mais livre e feliz; só uma confiança humilde e enamorada ao Senhor assegura esperança para o mundo. É quanto exprimiu com palavras simples a mais velha dos três pastorinhos, a Irmã Lúcia, ao descrever a experiência vivida: «A força da presença de Deus era tão intensa, que nos absorvia e aniquilava quase por completo. Parecia privar-nos inclusive do uso dos sentidos espirituais. A paz e a felicidade que sentíamos eram grandes, mas totalmente interiores, com a alma completamente recolhida em Deus».

Aos crentes uma tal mensagem pede para que sejam não menos, mas mais testemunhas de Deus e do seu primado; aos não crentes penso que ela coloca fortemente as grandes interrogações sobre a vida e a morte, sobre o mal e o bem, convidando-os à escuta do Mistério e à paixão pela Verdade, além de todas as derivas débeis de uma certa pós-modernidade. Saberão uns e outros estar à altura da promessa e do desafio? 


Em Deus este papa viveu os acontecimentos da sua vida, dos anos da formação e das não fáceis responsabilidades a ele confiadas desde jovem na Companhia de Jesus, às das resistência firme à violência da ditadura e ao corajoso empenho em salvar muitas vidas inocentes, passando pelo ministério universal de bispo de Roma: este estar recolhido em Deus, a partir do exemplo do seu Inácio de Loyola, é a sua força, a fonte da sua liberdade, é aquilo que dá confirmação das suas razões. A sua peregrinação a Fátima, àquela que a fé saúda como mãe dos pobres e vencedora dos poderosos, foi um confessar na maneira mais alta que o século iniciado poderá evitar as tragédias daquele que se concluiu só com uma condição: o regresso a Deus.

«O século XXI ou será místico ou não será»: esta frase de André Malraux parece ressoar com toda a sua força no gesto do papa peregrino da alma ao lugar onde - na coroa colocada na cabeça da pequena estátua de Maria - está encastoada a bala que a 13 de maio de 1981 não conseguiu deter S. João Paulo II, sinal de que os desígnios do Senhor eram outros e de que o anúncio aos pequenos pastores relativo ao senhorio e à vitória de Deus não fora desmentido. O Eterno revela-se também assim como o Senhor da história, bem acima dos poderosos deste mundo: e a mensagem de Fátima - aparentemente inacreditável no momento em que foi dada - soa hoje rica de uma extraordinária potência, fonte de esperança para além do naufrágio das presunções ideológicas e de compromisso para além de toda a renúncia a amar e a jogar a vida pelos outros. Como afirmou o papa Francisco, Maria «ensina-nos a virtude da espera, mesmo quando tudo parece privado de sentido: ela sempre confiante no mistério de Deus, mesmo quando Ele parece eclipsar-se por culpa do mal do mundo».

Aos crentes uma tal mensagem pede para que sejam não menos, mas mais testemunhas de Deus e do seu primado; aos não crentes penso que ela coloca fortemente as grandes interrogações sobre a vida e a morte, sobre o mal e o bem, convidando-os à escuta do Mistério e à paixão pela Verdade, além de todas as derivas débeis de uma certa pós-modernidade. Saberão uns e outros estar à altura da promessa e do desafio? O papa peregrino a Fátima lança a todos estas perguntas, ao mesmo tempo incómodas e necessárias, e indica o caminho para lhes encontrar a luz de respostas confiáveis





D. Bruno Forte, arcebispo de Chieti-Vasto, Itália
In "Il Sole 24 Ore", 14.5.2017
Trad.: SNPC
Publicado em 15.05.2017

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