sexta-feira, 5 de maio de 2017

QUE DESGRAÇA NA VIDA ACONTECEU

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Não vai longe o tempo em que havia filhos “sem” mãe “nem” pai. Eram os filhos de ninguém, os filhos expostos ou enjeitados, de pais desconhecidos. Que momentos terríveis não deveriam ser aqueles em que as mães se sentiam, exterior ou interiormente, empurradas para tomar e executar tal decisão!... Entre as variadíssimas causas, não faltariam, por certo, o peso dos preconceitos, da discriminação, da pressão social, do medo de abandono, da falta de recursos… Umas vezes, as crianças eram abandonadas em locais de risco onde poderiam morrer de fome, sede, frio... Outras vezes, colocadas à porta de alguma família, nos adros das igrejas ou à porta de mosteiros e conventos, na esperança de que a caridade cristã ou a filantropia e a compaixão humana as cuidasse. Outras vezes seriam vendidas, não como atletas de alto gabarito, mas como objeto de tráfico.
Para minimizar o número das que eram encontradas mortas, foi criada, em França, em 1188, e por influência do Papa Inocêncio III, a Roda dos Expostos ou Enjeitados, onde as mães deixavam os filhos sem serem identificadas. Em Portugal, as Rodas espalharam-se a partir de 1498 com o surgimento das Irmandades da Misericórdia. As Ordenações Manuelinas, de 1521, e as Filipinas, de 1603, mandavam que as Câmaras arcassem com as despesas até que o exposto completasse sete anos de idade. Mais tarde, em 1783, Pina Manique mandou criar e cuidar de ter, em todas as vilas, as referidas Rodas. Ainda hoje podemos encontrar livros com listas de pessoas expostas, bem como locais de possíveis Rodas e Rodas existentes em alguns conventos e mosteiros e, com certeza, noutros locais. Tempos houve também em que se registavam as crianças não lhes dando o nome do pai. Eram filhas de pai incógnito, de pai desconhecido ou ignorado. Isto acontecia quer fosse porque o pai se julgava socialmente imune de passar por cretino, quer fosse porque era de famílias tidas como “famílias de bem” embora embrulhadas em supina hipocrisia, quer fosse porque eram pessoas de função ou estatuto social tido como impermeável a tais procedimentos, quer fosse, na verdade, pela dificuldade em saber qual de entre vários seria o pai. Foi-se achando, e bem, que isso era uma desumanidade. E, de facto, nunca foi virtude nem ação a recomendar ou a louvar. Hoje, porém, dizem as estatísticas, está a aumentar o número de filhos de pai incógnito, mesmo existindo a possibilidade de investigar o ADN. E já vão surgindo também os filhos de mães incógnitas… E interrogamo-nos: por que é que se há de tirar às crianças este seu direito, direito nato, de ter um pai e uma mãe?
Seja como for, amados ou rejeitados, doentes ou saudáveis, novos ou idosos, cultos ou incultos, ricos ou pobres, pedintes ou esbanjadores, a verdade é que nunca nenhum de nós deixará de ser filho ou filha.
Celebrando o Dia da Mãe, saúdo todas as mães e, de uma maneira muito especial, as que, por amor aos seus filhos, estão a passar por dificuldades tais que lhes exigem heroísmos sem conta. Estamos com elas, rezamos por elas. Como afirma Francisco, “uma sociedade sem mães seria uma sociedade desumana, porque as mães sabem testemunhar, mesmo nos piores momentos, a ternura, a dedicação, a força moral” (AL174).
Recordo também as que já se encontram no Reino da Verdade e da Paz, nesse Reino que nem olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem o coração humano percebeu o que Deus Pai tem preparado para os seus filhos, para aqueles que O amam (cf. 1 Cor 2,9).
Miguel Torga, médico, escritor e poeta, tem, no seu “Diário IV”, um poema dedicado a sua mãe. Com a devida vénia, e em memória de todas as mães falecidas, incluindo a minha, ouso tornar presente esse poema, querendo provocar que cada leitor já órfão, possa fazer uma prece ao Senhor também pela sua própria mãe:

“Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!”

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Antonino Dias - Bispo de Portalegre Castelo Branco
05-05-2017


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