A culpa é um sem-abrigo. Não tem casa nem mora em lugar algum. Vagueia pelas ruas e pelos dias como se fosse sempre de noite. Traz às costas um saco do tamanho do azul que tem o Céu. Cheio de nomes. O meu. O teu. O nosso. O do vizinho. O da vizinha. O deste. O daquele. O do outro. Deve ser por vivermos num mundo de avessos que não somos nós que andamos com a culpa às costas. É a culpa que nos carrega. Não sei, exatamente, em que momento quisemos deixar de assumir as nossas responsabilidades. Não sei, exatamente, em que altura nos demitimos daquilo que é feito com as nossas mãos e, no fundo, com a nossa consciência. O que me parece é que estamos empenhados em construir um mundo incapaz de receber a culpa como uma peça que faz parte do puzzle. O que me parece é que estamos decididos a não enfrentar o que nos pertence.
A culpa é um sem-abrigo. Não tem rumo nem se orienta por mapas ou pontos cardeais. Deambula pelas ruas de mão esticada, à espera de receber o que devia ser seu por direito. Traz, no lado de lá da cor dos olhos, uma tristeza que não é sua. Uma mágoa que não combina com o seu rosto ainda pouco envelhecido. Já não fala nem tenta dirigir palavras a ninguém. Ainda canta. Uma canção maçadora que se entrelaça, pegajosa, na memória do coração. Ninguém a ouve. Ninguém a vê.
Não se acendem luzes novas. Não se descobrem novos caminhos. Não se reparam as feridas velhas. Não se ama com verdade. Não se faz nada que surpreenda as estrelas centenárias que há no Céu. Estamos a diminuir. A ficar pequeninos de tanta falta de coragem.
A culpa nunca é nossa. É varrida cobardemente para debaixo de um qualquer tapete que não tenha nada que ver connosco. A culpa nunca é nossa. Não a recebemos nem fazemos dela bandeira porque, na realidade, nos envergonhamos daquilo que fizemos. Daquilo que fomos. Daquilo que deixámos ser. A culpa não é nossa. É de quem não está. De quem não viu. De quem não sabe nem ouve. E a culpa continua a aparecer pelas ruas que não são de ninguém. Lutando para se fazer ver e ouvir.
No dia em que percebermos que a culpa também é nossa, pode ser que possamos merecer, finalmente, o descanso que (ainda) temos.
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