Quando alguém reage picado pelos nervos à flor da pele, regra geral perde as estribeiras, sai asneira. O bom senso foge, e ele escorrega para o chão, para a vingança, o rancor, o ódio e quejandos. Tudo isso, porém, é péssima companhia, é morrinha a esconjurar. Alguém aconselha a que, antes de se reagir, pelo menos se conte até dez... serenamente... com muita calma. Eu acho que melhor será contar até cem, ou mais, ou meter a viola ao saco e não reagir... Antigamente, poucos sabiam ler, e a sabedoria do contar não sei até onde chegaria. O que sei é que essas poses, nada fotogénicas, existem desde as origens. Logo no princípio, Caim matou Abel, por ciúmes, invejas ou lá o que fosse. E um descendente de Caim, Lamec, não era mesmo bico que se assoasse. Dizia ele: “Por uma ferida, eu matarei um homem, por uma cicatriz eu matarei uma criança. Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete” (Gn 4, 23-24). A tantos milénios de distância, estes estados de alma ainda nos apavoram. No entanto, hoje, ainda há quem faça pior ou igual, por muito menos, por nada, apenas porque o outro é diferente. Mas, então, que bichinho morderá a essa gente?
Os povos sempre vão evoluindo e as barbáries vão ficando para trás. Só se reiteram por ausência ou rudeza de formação, por cabeça dura e coração de pedra, ou porque se esquece ou nada se aprende com as lições da história. Essa rudeza, esse endurecimento do coração e essa ignorância da história continuam a ser a causa de muitas tragédias de hoje, pequenas ou grandes.
No livro do Êxodo, porém, aparece-nos um salto verdadeiramente revolucionário nessa matéria. De quando em vez, esse princípio é hoje citado de forma depreciativa, precisamente porque se admite progresso na educação e se pensa que isso já foi ultrapassado. Essa norma foi, nessa altura, de um alcance extraordinário, foi mesmo inovadora. Ordenava que quem agisse mal fosse julgado e castigado segundo a justiça. Era a lei de talião: “Se houver dano grave, então pagará vida por vida, olho por olho, dente por dente, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe” (Ex 21,24). Isto é, procurava-se um justo equilíbrio entre os danos causados e a pena a aplicar. Foi, de facto, um salto civilizacional, um conceito jurídico de justiça retributiva, buscando proporcionalidade. O Código babilónico de Hamurabi e vários sistemas jurídicos ao longo dos tempos foram-se inspirando nessa lei de talião. Ainda há sistemas jurídicos que hoje têm por base o direito da retaliação.
Dando mais um passo nesta saga da evolução dos povos, no Livro do Levítico aparece-nos um dado novo. Aí se lê que nada de vingança, e, se nada para além da justiça, que haja também misericórdia, condição indispensável para também se obter a misericórdia de Deus: “Não sejas vingativo, nem guardes rancor contra os teus concidadãos. Ama o teu próximo como a ti mesmo” (Lev 19,18). Mesmo que este perdoar e amar fosse mais para consumo interno, dos concidadãos, o livro dos Provérbios acentua que: “se o teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer, se tem sede, dá-lhe de beber .... e Deus te compensará” (cf. Prov 25, 21-22).
Jesus, porém, coloca no mesmo plano o amor a Deus e o amor ao próximo: “Quem não ama o seu irmão a quem vê, como pode amar a Deus a quem não vê?” (1Jo 4, 20). E insiste na necessidade de rasgar horizontes, de destruir barreiras históricas e culturais, pois o próximo são todas as pessoas, os inimigos também (cf. Mt 5,43-48).
Entre o povo judeu, no tempo de Jesus, haveria 613 mandamentos. Destes, 365 eram proibições. Os restantes, 248, eram ações a praticar. Esta quantidade de normas com certeza que poria a cabeça de muitos em parafuso, sobretudo os mais escrupulosos. Era muita areia para quem os tinha de aprender, praticar e ensinar. Por isso, mesmo que em jeito de cilada, surge a pergunta do fariseu a Jesus: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” Jesus cita dois: “Amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a este: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Toda a Lei e os profetas dependem destes dois mandamentos” (Mt 22,36-40). E para que não houvesse dúvidas, Jesus esclarece o doutor da Lei sobre quem é o próximo. Conta-lhe a parábola do bom samaritano, um estrangeiro, um gentio, que, ao contrário das “pessoas de bem” que, ao passarem, fizeram vista grossa, ele usou de misericórdia para com um homem mal tratado, caído e abandonado na margem do caminho. O doutor da Lei logo conclui que, de facto, esse samaritano, é que tinha agido bem em relação àquela pessoa que precisava de cuidados. Jesus, então, reafirmou-lhe: vai, e faz o mesmo (cf. Lc 10, 25-37). O próximo são, pois, os outros, sobretudo os que precisam de ajuda, sejam eles quem forem, amigos ou inimigos, ao perto ou ao longe, crentes ou não crentes. É o sentido social da existência de que fala o Papa Francisco na Encíclica Fratelli tutti. Aí, ele denuncia “aqueles que parecem sentir-se encorajados, ou pelo menos autorizados pela sua fé, a defender várias formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes” (Ft 86).
Mas esta coisa de perdoar sempre criou mossa a muita gente. São Pedro também precisou de um esticãozinho de orelhas sobre tal matéria. Jesus falava das exigências da vida em comunidade. Esta deve basear-se na fraternidade e no amor, onde o maior deve ser o mais pequeno e todos se devem sentir responsáveis por todos, indo à procura do afastado como o pastor vai à procura da ovelha perdida. São Pedro, porém, parece que estava a achar aquilo um pouco exagerado e a precisar de alguns retoques, pois a vida em comunidade nem sempre é fácil, há sempre quem julgue ter o direito de ultrapassar os limites e há quem se julgue controlador dos mesmos. Por isso, Pedro pergunta a Jesus: «Senhor, se meu irmão me ofender, quantas vezes deverei perdoar-lhe? Até sete vezes?» Com certeza que Pedro até pensaria que já estava a ser demasiadamente generoso, perdoar até sete vezes já seria um exagero segundo os critérios em voga, já exigiria uma dose de paciência muito maior que a de Job. Mas Jesus logo lhe responde: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete.” Como quem diz, o cristão está chamado a assumir uma mentalidade completamente nova, deve perdoar sempre. E conta-lhe a parábola dos dois devedores em que um recebe o perdão duma dívida incalculável, mas não é capaz de perdoar, a outro, uma ninharia que esse outro lhe devia (Mt 18, 21-35). Nessa parábola, exalta-se a infinita misericórdia de Deus para connosco, e a nossa incapacidade de perdoar o quer que seja aos outros. O que deve modelar o nosso agir em relação aos outros é aquela misericórdia que Deus tem para connosco. E a norma permanece: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”.
Mas dando mais um passo em frente, se devemos amar o próximo como a nós mesmos, o próximo, penso eu, nem sempre ficará bem servido. Muitas vezes, nós não nos amamos a nós mesmos. Será que se ama a si próprio aquele que despreza a sua saúde, que se afoga em vícios, que usa de violência, que entra pela maledicência e gera intrigas, que não cumpre o seu dever, que vive em pecado e na infidelidade a Deus? Como poderemos amar os outros como nos amamos a nós próprios se nós não nos amamos nem nos respeitamos?
Pois, pois, mas Cristo deu-nos um Mandamento Novo: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei (cf. Jo 15,12). Como quem diz: será melhor amar os outros não tanto como vos amais a vós mesmos, mas como Eu vos amei. E é diferente. Ele amou-nos gratuitamente, até ao fim, perdoando aos próprios inimigos, dando a vida sem apresentar fatura, por amor e misericórdia.
D. Antonino Dias- Bispo Diocesano
Portalegre-Castelo Branco, 11-12-2020.
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