quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Dilema




«Nada é impossível a Deus» (Lc 1, 37). Mas não será impossível a Deus não amar? Não será impossível a Deus não ser misericordioso? Quer isso dizer que há impossíveis para Deus quando nos referimos a coisas que vão contra a Sua natureza? Talvez não porque os dilemas são mais humanos do que divinos. O que compreendemos daquilo que Deus nos revela, é que Ele conhece-nos profundamente. Para mim, isso significa sermos chamados à profundidade para poder resolver os nossos dilemas. Com Maria, a quem o anjo dirige estas palavras, podemos aprender a lidar com os dilemas em profundidade. Como? Questionando.

Um dilema é um argumento entre duas proposições que se contradizem. É diferente de um paradoxo onde existe apenas uma proposição que se auto-contradiz. Um dilema existe quando chego a uma bifurcação num túnel no interior de uma montanha, e não faço a mínima ideia de qual o caminho a seguir. Esta cena acontece no filme do Senhor dos Anéis. Porém, será o ar fresco num dos túneis que ajuda Gandalf a escolher o caminho. Por isso, o modo que temos de resolver os nossos dilemas é com mais informação. E isso faz-se, como Maria em relação ao anjo, questionando.

Existem muitos modos de questionar. Penso nos momentos em que questionamos por desconfiança. Mas no caso de Maria, aquando da Anunciação, não é a desconfiança, mas o dilema que a leva a questionar. Depois da saudação do anjo, «inquiria de si própria o que significava tal saudação» (Lc 1, 29), talvez por se considerar uma pessoa simples e ver o “Avé” mais próprio de pessoas como César, imperadores, do que simples raparigas. Mas, também questiona, «como será isso, se eu não conheço homem?» (Lc1, 34), talvez por ser uma pessoa concreta e saber bem como nascem os bebés. E depois de um “nada é impossível a Deus”, Maria escolhe confiar na Sua Vontade. Seria Maria livre nesta escolha se não sentisse o dilema?

De facto, para todo o cristão faz alguma impressão ver toda a nossa vida espiritual assente numa escolha humana. Teria Deus arriscado demais? Ou, pelo contrário, conhecendo Maria melhor do que ela se conhecia a si própria, Deus confiou na capacidade humana de lidar com os dilemas e tomar decisões. A maior parte das decisões na nossa vida espiritual não têm anjos que nos batem à porta e nos oferecem propostas de Deus. Aliás, se isso acontecesse, hoje, maior seria a desconfiança que o dilema, e pensaríamos que o dito “anjo” seria um maluco a chatear-nos, e para o qual um hospital dedicado a doentes mentais seria uma boa solução. Como o mundo mudou. Poderia Jesus ter nascido hoje? Talvez fosse um dilema interessante para Deus.

Hoje, ensinamos aos adolescentes para não falar com estranhos. Por isso, dificilmente um anjo bateria à porta, e seria atendido por uma adolescente; ou enviaria uma mensagem pelas redes sociais, sem criar uma reação de desconfiança e início de um processo de bloqueio desse perfil. Fora dos ambientes de grupos de jovens, comunidades de oração ou movimentos, dificilmente um anjo poderia interpelar uma jovem, a não ser que fosse, ele mesmo, um jovem. Pensando bem, talvez o anjo que bateu à porta de Maria fosse um jovem, e não um homem como habitualmente somos levados a imaginar. Mas não viveria, também, este anjo um dilema? E se Maria tivesse dito que não e fechado a porta?

Seguramente que o modo como o anjo anunciou esta ideia de Deus a Maria, goza, como todas as criaturas de Deus, de liberdade de expressão. As suas palavras pretendiam abrir uma porta muito especial: a porta do coração. Daí que lendo e relendo as palavras do anjo sinto que exprimem, essencialmente, confiança. E ao pensar nisso, percebo como em muitos dilemas da nossa vida, essa é a única coisa que Deus nos pede: confiar n’Ele.

O problema de episódios na narrativa humana, como este, é o facto de serem únicos, pelo que muitas pessoas, à distância (temporal), são, legitimamente, levadas a duvidar da sua veracidade. Nesse caso, remetem todo e qualquer ensinamento destes momentos de Deus para o imaginário daqueles que decidem ser cristãos. Sinceramente, também não tenho forma de verificar se Sócrates disse o que Platão afirma nos seus escritos (e atribui a Sócrates) porque o primeiro nunca escreveu e até via na escrita (segundo Platão) um ataque feroz à nossa memória. Mas não experimentamos, hoje, a mesma veracidade dos ensinamentos do passado quando procuramos fazer a mesma experiência? Aquilo a que chamamos de anamnése, ou actualizar da memória?

De Maria aprendo que a atitude de questionar diante dos dilemas da fé não significa pôr a Vontade de Deus em causa, mas encetar no caminho da sabedoria de quem põe toda a sua confiança em Deus. E, por vezes, que a melhor resposta aos grandes dilemas da vida será uma simples e sincera pergunta.


Miguel Oliveira Panão




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