domingo, 31 de dezembro de 2023

E se o Natal for tudo isto?


E se o Natal for um recomeço? Talvez este seja o seu significado. E, assim, não nos dedicamos a festejar o que já aconteceu, mas sim aquilo que pode vir a acontecer. Se o Natal for um recomeço, então este tempo é uma oportunidade para festejarmos o que ainda podemos vir a ser. Se o Natal for um recomeço, então andamos a brilhar de esperanças.

E se o Natal for uma eterna novidade? Talvez o Natal seja o tempo em que nos dedicamos ao velho para podermos abraçar o novo. Se o Natal for uma eterna novidade, então andamos a festejar a possibilidade de nada ser dado por terminado. Se o Natal for uma eterna novidade, então andamos a celebrar a certeza de que haverá sempre algo para descobrir em nós, nos outros e em Deus.

E se o Natal for para dar espaço? Talvez o Natal seja a altura ideal para revisitarmos as nossas sombras. Se o Natal for para dar espaço, então andamos a festejar a nossa inteireza. Se o Natal for para dar espaço, então andamos a celebrar a alegria de sabermos que Deus encarna em toda a nossa história. Se o Natal for para dar espaço, então andamos a rejubilar pela novidade de saber que não há nada na nossa história que não possa ser abraçado por este Deus que quer estar connosco.

E se o Natal for para contemplar? Talvez este seja o grande convite desta época. É o tempo onde devemos treinar o nosso olhar. Se o Natal for para contemplar, então é a altura de olharmos com atenção aqueles a quem ninguém permite recomeçar. Se o Natal for para contemplar, então é chegada a hora de olharmos, sem julgamentos, para os que andam em busca. Se o Natal for para contemplar, então talvez tenha chegado o tempo de percebermos que Deus nos visita através dos inesperados, dos últimos, dos que ninguém espera.

E se o Natal for tudo isto? Talvez o Natal seja tudo isto. Um tempo onde o recomeço nos encaminha para esta novidade: a de a nossa vida ganhar espaço na contemplação do que somos e, dessa forma, descobrirmos onde nasce, todos os dias, este Deus-Menino. Este Deus que não se cansa de querer estar connosco.


Emanuel António Dias

FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA DE JESUS, MARIA E JOSÉ

 



O Deus que se vestiu de menino frágil e se apresentou aos homens no presépio de Belém encontrou abrigo numa família humana, a família de José e de Maria, dois jovens esposos de Nazaré, uma aldeia situada nas colinas da Galileia. Neste domingo, ainda em contexto de celebração do Natal do Senhor, a liturgia convida-nos a olhar para essa Sagrada Família; e propõe-nos que a vejamos como exemplo e modelo das nossas comunidades familiares.

O Evangelho leva-nos, com a Sagrada Família, até ao Templo de Jerusalém, onde Jesus vai ser apresentado a Deus, conforme a Lei judaica determinava (cf. Nm 18,15-16). O quadro, profundamente interpelador, mostra uma família fiel e crente, que escuta a Palavra de Deus, que procura concretizá-la na vida e que consagra a Deus os seus membros.
Quando numa família Deus “conta”, os valores de Deus passam a ser, para todos os membros daquela comunidade familiar, as marcas que definem o sentido da existência. O espaço familiar torna-se, então, a escola onde se aprende o amor, a solidariedade, a partilha, o serviço, o diálogo, o respeito, o cuidado, o perdão, a fraternidade universal, o cuidado da criação, a atenção aos mais frágeis, o sentido do compromisso, do sacrifício, da entrega e da doação… São esses valores – os valores de Deus – que procuramos cultivar na nossa comunidade familiar?

A segunda leitura sublinha a dimensão do amor que deve brotar dos gestos dos que vivem “em Cristo” e aceitaram o convite para ser “Homem Novo”. Esse amor deve atingir, de forma muito especial, todos os que connosco partilham o espaço familiar e deve traduzir-se em atitudes de compreensão, de bondade, de respeito, de partilha, de serviço.A nossa primeira responsabilidade vai, evidentemente, para aqueles que connosco partilham, de forma mais chegada, a vida do dia a dia (a nossa família). Esse amor, que deve revestir-nos sempre, traduz-se numa atenção contínua àquele que está ao nosso lado, às suas necessidades e preocupações, às suas alegrias e tristezas, aos seus sorrisos e às suas lágrimas? Traduz-se em gestos sentidos e partilhados de carinho e de ternura? Traduz-se num respeito absoluto pela liberdade e pelo espaço do outro, por deixar o outro crescer sem o sufocar? Traduz-se na vontade de servir o outro, sem nos servirmos dele?
A expressão “esposas, sede submissas aos vossos maridos” é, evidentemente, uma expressão anacrónica, que deve ser devidamente contextualizada no universo cultural e social do séc. I, mas que hoje não faz sentido. Para os que vivem “em Cristo”, o valor que preside às relações é o amor… E o amor não comporta submissão ou superioridade, mas igualdade fundamental em dignidade e direitos. O mesmo Paulo dirá, noutras circunstâncias, que para os que vivem “em Cristo” “não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher”, porque todos são um só em Cristo Jesus (Gl 3,28). É este o horizonte que deve estar sempre diante dos nossos olhos.

A primeira leitura
apresenta, de forma muito prática, algumas atitudes que os filhos devem ter para com os pais… É uma forma de concretizar esse amor de que fala a segunda leitura.Apesar da sensibilidade moderna aos direitos humanos e à dignidade das pessoas, a nossa civilização cria, com frequência, situações de abandono, de marginalização, de solidão, cujas vítimas são, muitas vezes, aqueles que já não têm uma vida considerada produtiva, ou aqueles a quem a idade ou a doença trouxeram limitações. No entanto, do ponto de vista de Deus, nenhum ser humano é “descartável”, ou estará alguma vez fora do prazo de validade. Não podemos admitir – com a nossa indiferença ou com o nosso silêncio cúmplice – que as pessoas em situação de fragilidade sejam abandonadas na berma da estrada, sempre que o mundo caminha a um ritmo que elas não podem acompanhar. Tenho consciência disto?
É verdade que a vida de hoje é muito exigente a nível profissional e que nem sempre é possível a um filho estar presente ao lado de um pai que precisa de cuidados continuados ou de acompanhamento especializado. No entanto, se alguma vez as circunstâncias impuserem a necessidade de afastamento de um pai idoso ou descapacitado do ambiente familiar, isso não pode significar abandono e condenação à solidão. Seremos sempre responsáveis por aqueles que cativamos, e ainda mais por aqueles que foram, para nós, instrumentos do Deus criador e fonte de vida.

https://www.dehonianos.org/

sábado, 30 de dezembro de 2023

A cura de um ser humano é a cura de toda a humanidade



Vivemos como se pertencêssemos aqui. Como se fossemos deste mundo e como se a vida não tivesse prazo de validade. Enquanto vamos perscrutando as nossas tempestades ou os ecos das nossas feridas temos, por vezes, “aterragens” de consciência. Percebemos o que antes nos estava velado. Compreendemos as razões deste ou daquele acontecimento. À medida que vamos caminhando desaparecem os véus. As nuvens. As faltas de entendimento transformam-se em clareza e água límpida.

É quando temos mais consciência de nós próprios que enveredamos pelo caminho da cura. Já não nos faz sentido viver à sombra das feridas, dos desgostos, das mágoas. Já não nos faz sentido carpir as desgraças do costume nem reverberar a energia negativa de uma alma com águas paradas.

Rumar à cura é ver tudo como é. Mais do que aceitar o que se vê, é ter a coragem para contemplar os fantasmas de tudo o que ficou. De tudo o que se viveu e não viveu.

Mas o mais interessante sobre o processo de cura e sobre a vontade de o seguir é esta: quando nos curamos estamos a incentivar os outros a fazer, também, esse caminho. Quando estamos em paz os outros ficam em paz connosco.

Quando nos curamos os outros curam-se também.

Quando nos arriscamos a olhar com compaixão, conseguimos também ver os outros através dessas lentes.

O mais bonito do processo de cura individual é a consciência de que todos temos um caminho coletivo a percorrer. É perceber que não vamos sozinhos. É considerar o outro com menos julgamento porque, também eu, quero ser visto sem esse peso. Principalmente por mim próprio.

Estamos todos mais unidos do que separados. Aquilo que fazemos no silêncio do nosso coração pode fazer que outros corações se calem. Ou tenham a coragem para dizer o que nunca foi dito.

Nestes dias que precedem o Natal e que já trazem tanto da Sua Luz, saibamos ter a coragem para pedir a cura. Para entregar tudo aquilo que já não interessa e para olhar para os outros com o olhar de amor que nos merecem.

Não te esqueças: a cura de um ser humano é sempre a cura de toda a humanidade.


Marta Arrais

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

BURRO QUE ME LEVE OU CAVALO QUE ME DERRUBE?...



Nem sempre o que é idealizado e conseguido é o melhor ou mais útil. Quem procura cavalos de raça para atingir objetivos ambiciosos e encher o ego, pode acabar triste e sofrido, desejando burros que, serena e pacificamente, o ajudem a levar a água ao moinho. Por isso se diz que ‘mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube’. Este foi o mote dado a Gil Vicente para que ele se desunhasse a provar que não plagiava os seus trabalhos. Sem ficar amorrinhado, arregaçou as mangas, encheu-se de nove horas e deu à luz, com grande estilo e sem dor, “A Farsa de Inês Pereira”, uma divertida peça de teatro. De mãe galinha, a Inês, ambiciosa e oca com vocação para a folia, para se libertar da sua pasmaceira existencial desejava um marido apalaçado e rico, envernizado, de polidas e altas relações socias, com unhas para tocar viola e a saber cantar. Por isso, recusa Pêro Marques pelo considerar trouxa e tosco, sem desenvoltura social, embora abastado. Seduzida com engenhosas mentiras, casa com Brás da Mata, um fanfarrão a viver de aparências, falido, não envernizado mas doido varrido, fraco traste que lhe deu o golpe do baú e lhe infernizou a vida. Morto quando afoitamente fugia da guerra, Inês abraça e festeja a tão desejada notícia. Viúva alegre e amante da vida airada, volta ao início, casa agora com Pêro Marques, o trouxa, o bobo e tosco, mas com guita para comprar melões. O desenrolar do final da peça, porém, faz lembrar o célebre sapateiro de Braga, na versão que eu ouvi. Este, quando soube que a sua mulher estava a jantar com um amante, correu veloz para o sítio, esbaforido e com força de assustar, faz bater a aldraba da porta só para reivindicar que ‘ou haja moralidade ou comamos todos’, das duas, uma. Pêro Marques, por sua vez, pucarinho de Estremoz nas mãos de Inês, sem suspeitar que estava bem enfeitado, carrega alegremente a mulher e, cantando com ela que assim é que se fazem as coisas, leva Inês às cavalitas até junto do amante, um falso ermitão, seu antigo namorado. Se Gil Vicente passou no teste com elevada distinção, Inês, dado o desaire da sua primeira experiência, bem pôde dizer com substância: “antes quero asno que me leve que cavalo que me derrube”.
Mas vem isto a propósito de quê? Do Dia Mundial da Paz, ora pois! E, já agora, também do Dia da Sagrada Família! Quando a família é tudo menos família, quando cada um puxa para seu lado e procura a melhor maneira de trair, ofender e derrubar o outro, quando se fomenta a cultura da indiferença e apenas se promove o ego de costas voltadas para o verdadeiro sentido e significado da vida, quando se descuida a fidelidade a compromissos assumidos e se dá azo ao deixa correr, avizinha-se o sofrimento e a guerra com a destruição interior de inocentes, que são sobretudo os filhos. E ninguém merece isso, ninguém! E que dizer da Paz entre os povos?!... Não é que nós fomos dotados de sabedoria, inteligência e capacidade para sermos paus para toda a obra e acabamos, mercê de ambições sem medida, sem ética e sem moral, por virar o feitiço contra o feiticeiro? Verdade é que o homem sonha e concretiza, gera e acumula conhecimento, partilha-o, soma extraordinárias conquistas no campo da ciência e da tecnologia, contribui para uma melhor organização da sociedade, para um mais alto aperfeiçoamento do homem e do mundo. Mas..., e aí está o mas..., há de haver sempre o demo de um mas a dar gana de partir pratos por ser desmancha prazeres... Se a ciência e a tecnologia, por ambições sem medida e por falta de critérios e ética, se torna semelhante a cavalo que nos derruba, não valerá a pena preferir o burro que nos deixa viver em paz, harmonia, liberdade e dignidade?... Presumo que o leitor acaba de travar a fundo e de encostar à valeta para zurzir nesta ideia, mas tenha calma, por favor, não se enerve, é só para lhe despertar o interesse pelo Dia Mundial da Paz e o provocar a ler a Mensagem do Papa Francisco para esse dia sobre a ‘Inteligência Artificial e a Paz’, até porque, a paz também depende de cada um de nós, mesmo que não sejamos cientistas nem mestres em robótica e sistemas inteligentes...como eu, aliás, que estou a anos luz de distância!
A investigação da verdade fascina, e essa é a tarefa fundamental da ciência em favor da humanidade. Ela vai satisfazendo as exigências e os caprichos da vida e vencendo a multiplicidade de achaques que lhe espreitam pela janela e lhe batem à porta. Muito mais e melhor o faz quando é inspirada pelo amor, regulada por aquela sabedoria que é património da humanidade e defendida de ingerências indevidas. Se assim for, ela respeitará sempre a dignidade, a liberdade do homem, ajudando-o a viver na esperança de atingir o fim último da paz, todos os direitos humanos. É indiscutível a confiança na comunidade científica mundial, ela gera respeito e admiração, alicerça a esperança. Acreditamos que a autonomia legítima das ciências, quer no campo da investigação pura, quer no campo da investigação aplicada não está em causa. Alegramo-nos quando percebemos que os poderes político, económico e outros, sentem a obrigação de a favorecer e apoiar, sem a deter nem a colocar ao serviço de interesses menos bons. E aqui é que está o busílis!
São João Paulo II afirmava que “o homem de hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que produz; ou seja, pelo resultado do trabalho das suas mãos e, ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua inteligência e das tendências da sua vontade” (RH15). Cada vez mais apreensivo, o homem teme que alguns dos seus produtos, sobretudo “aqueles que encerram uma especial porção da sua genialidade e da sua iniciativa, possam ser voltados de maneira radical contra si mesmo; teme que eles possam tornar-se meios e instrumentos de uma inimaginável autodestruição, perante a qual todos os cataclismas e as catástrofes da história, que nós conhecemos, parecem ficar a perder-se de vista” (id. RH15).
Dizem os sábios, os livros e o senso comum, que, se não existir um planeamento racional e honesto, se o homem deixar de agir como ‘senhor’ e ‘guarda’ inteligente da natureza, mas se tornar um explorador e destruidor sem respeito algum pelo desenvolvimento da vida moral, sem dar prioridade à ética, esquecendo o primado da pessoa sobre as coisas, a solicitude do homem pelo homem e a superioridade do espírito sobre a matéria, temos o caldo entornado e a mesa da vida muito suja. O que deve estar sempre presente é saber “se o homem, enquanto homem, no contexto deste progresso, se torna verdadeiramente melhor, isto é, mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberto para com o outros, em particular para com os mais necessitados e os mais fracos, e mais disponível para proporcionar e prestar ajuda a todos” (RH15). Francisco, aludindo a esse dom que é a inteligência humana e agradecendo tudo quanto ela é capaz de fazer para bem da humanidade, afirma que este vasto leque de possibilidades humanas, se não houver ponderação, podem não ser consideradas um verdadeiro progresso, mas “um risco para a sobrevivência humana e um perigo para a casa comum”. Se a inteligência e o coração do homem se tornarem, eles mesmos, cada vez mais ‘artificiais’, a paz e os direitos humanos serão uma miragem!

D. Antonino Dias - Bispo Diocesano
Portalegre-Castelo Branco, 29-12-2023.


Que os teus sonhos vençam os desencantos



Sempre que algo aparece e nos impede de seguir pelo caminho em que estávamos, gera-se dentro de nós um misto de pensamentos, emoções e vontades a que se costuma chamar, de forma simples, frustração.

A capacidade de gerir bem as nossas frustrações é essencial para qualquer um de nós.

Como reagir face a uma adversidade? Em princípio é bom ser flexível e absorver uma parte do choque, a fim de nos mantermos inteiros, até porque de nada vale fazermos frente à verdade dos factos. Quem se deixa ficar cego e reage de forma descontrolada tem poucas hipóteses de sucesso e arrisca-se a somar mais tragédia ao que já não era bom!

Se tiveres de esperar, espera. Essa é uma das maiores e mais difíceis virtudes que nos são pedidas. A esperança implica acreditar que o tempo certo não é já… e que adiar é, por vezes, a decisão mais certa e corajosa que podemos tomar.

Se for tempo de agir, age. Podemos ter pensado muito e até ter decido bem, mas se não agirmos no instante certo tudo se perde.

Se tiveres de recuar e começar de novo, talvez ainda mais atrás e pior do que antes, recua e recomeça. O que importa não é de onde começas, mas se te consegues pôr a andar e até onde vais.

Quando tiveres de descansar, descansa. Não te lances em campanhas muito audaciosas e exigentes em termos de esforço, porque és humano e o descanso faz parte da forma como nascem em ti as forças.

Aquilo que tu és vê-se bem pelo que fazes quando estás frustrado.

Que nada, por pior que seja, derrote a tua alma!


José Luís Nunes Martins

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

A minha Tenda

               

Sabes amiga, a minha tenda está vazia, não porque falte alguma coisa, mas porque espera uma visita.

Para Ela arranjei espaço, limpei o lixo que me incomodava, lavei as janelas para entrar mais luz e esperei… esperei pacientemente porque sabia que era importante.

Desliguei de tudo o que me poderia perturbar e redobrei a atenção para ouvir que o Senhor queria de mim. Fiz silêncio e escutei:


As crianças que faziam barulho, os adolescentes que resmungavam e os jovens que procuravam mais e mais. Convidei-os a entrar, até porque a noite, essa estava a chegar. Entraram e admiraram a minha espera e comigo esperaram.

Os chamados “pecadores”, gente sem nome, que representa a humanidade nos seus momentos mais tristes. Pensei nos meus pecados e como eles prevalecem na medida em que aumenta a minha infelicidade, quando deixo de acreditar no bom de cada um e encho a cabeça de maldades e desconfiança. Recordo os momentos em que deixamos entrar a maldade e somos seduzidos pela arrogância. A estes Senhor, também os convidei a entrar e aceitaram.

Ouvi as lamentações dos frágeis que passaram junto da minha tenda e rapidamente os convidei a entrar. Senti a tristeza daqueles a quem lhes foi roubada a justiça, dos desfavorecidos olhados com desdém, das mulheres vítimas de violência, dos novos escravos do trabalho, dos sem-abrigo nem identidade e de tantos que carregam o pior que a humanidade tem. O espaço foi ficando apertado, mas a minha tenda deixou de estar vazia e eu deixei de ter frio.

Ouvi os incrédulos, gente sábia que tudo sabe sobre o que vê e pouco sabe explicar sobre o que sente. Não consegui sentir revolta nem sobranceria pois eu, por vezes também sou incrédula. Também eles entraram, talvez por curiosidade apenas, mas eram os que mais atentos estavam ao meu silêncio.

Ouvi famílias inteiras que conversavam entre si sobre as peripécias do dia, as zangas entre amigos, as chatices do trabalho, os maus resultados e pela primeira vez sorri! Também naquelas famílias reconheci a minha humanidade. Convidei-os a entrar e nem acharam estranho a tenda estar quase cheia, pois estavam habituados a uma casa cheia de pouco silêncio.

Ao longe ouvi pessoas em conflito e apeteceu-me esconder dentro da tenda para não ser envolvida em grandes confusões. Sabe Deus o quanto detesto confusões, a menos que seja eu a criá-las! Mas senti curiosidade, senti vontade de perceber o porquê do conflito, mas confesso, não percebi nada do que diziam e acho que eles também não se percebiam uns aos outros. Fiz uma abordagem, mas foi em vão, o que é certo, é que estavam tão distraídos que entraram na tenda. De repente fez-se silêncio.

Cansada que estava de tal alvoroço ergui os olhos ao céu e contemplei a beleza do pôr-do-sol, a brisa fria do anoitecer, e os luzeiros que surgiam ao longe. Senti a Tua criação em pleno, mas rapidamente reparei na Tua mais bela criação que ocupava a minha tenda como se fosse sua. Acolhi cada um com gentileza e sem juízos de valor (por mais que me apetecesse). Perguntei: Senhor que queres que eu faça?

Rapidamente pus a mesa, sim, porque sei que gostas de festa, pus o pouco que tinha, e sabes? Sobrou. Rapidamente deixou de haver crianças, jovens ou adolescentes, nem tão pouco frágeis, pecadores ou incrédulos, reinou o ambiente de família onde existem conflitos que se resolvem a conversar e dúvidas que se respondem com paciência, onde aos pecados, chamados erros e resolvemos com pedidos de desculpa, e as fragilidades recordam a humanidade de cada um de nós. Nem frio nem fome, nem tristeza nem ódio. A minha tenda Senhor, passou a ser Tua porque: onde há Amor, aí habita Deus.

E Tu amiga? Como é a tua tenda?



Raquel Rodrigues, 

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Natal




Natal, nascer para...
O amor. Um amor incondicional, que é tudo o que existe. Um amor que é de e para todos. Que permite ver para além da margem e percorrer o caminho da esperança.

Natal, nascer para...
O dom da vida. A vida que está dentro de cada um de nós e nos relembra que viemos aqui para amar e ser amados.

Natal, nascer para...
A beleza do simples, onde mora a contemplação da própria existência.

Natal, nascer para...
A gratituidade, de que tantas vezes é na ausência e na sombra que encontramos a luz que ilumina e que sustenta todo o nosso Ser.

Natal, nascer para...
O que somos, onde a fonte de cada experiência é individual e sagrada, num encontro eterno de amor e fraternidade universal.


Carla Correia


terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Um Deus revelado aos últimos



Ora, havia, naquela mesma comarca, pastores que estavam no campo e guardavam durante as vigílias da noite o seu rebanho. E eis que um anjo do Senhor veio sobre eles, e a glória do Senhor os cercou de resplendor.”

Lucas 2,8-20


Um Deus revelado aos últimos. Desde o seu início, este Deus incarnado, deu-Se a conhecer a quem tratava a vida com simplicidade. Escolheu os “sem nome” para que todos se sentissem chamados. Nasceu no meio do nada para que todos pudessem reconhecer que Ele era o tudo.

Estamos prestes a comemorar o nascimento de um Deus que se fez menino. Um Deus que quis nascer para que pudéssemos levar connosco a oportunidade de nascermos constantemente. É um Deus de últimos e de recomeços. É um Deus de refazeres, onde em Si e por Si tudo e todos ganham Vida.

Um Deus revelado aos últimos. Um Deus que só faz sentido na vida dos que um dia perderam o sentido da Vida. É um Deus de últimos porque não vive para reinar, mas sim para servir, para amar. Um Deus que só se deixa reconhecer por quem não se reveste de grandeza, nem de certezas. É um Deus de últimos, porque habita a dúvida, a inquietação e as revoltas.

Estamos prestes a comemorar o nascimento de um Deus que se fez menino. E com isto abre-se todas as possibilidades. É um Deus que nos chama a (re)nascer e que nos convida a reerguer tantos e tantas. É um Deus que nasce menino para que nos façamos inteiros. É um Deus-Connosco, um Deus que não nos larga por nada.

Um Deus revelado aos últimos. Aos puros de coração. Um Deus revelado aos que O buscam com toda a sua inteireza. Este é o Deus-Connosco. O Deus que habita a nossa fragilidade. A nossa iniquidade. A nossa fraqueza. Este é o Deus-Connosco o que não perde uma oportunidade para nos fazer nascer!

Um Deus revelado aos últimos… e essa é a nossa sorte!


Emanuel António Dias

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Boas Festas

 



Desejamos a todos os nossos paroquianos, em todas as comunidades que servimos, um Santo e Feliz Natal, cheios das bençãos e graças de Jesus Menino nascido em Belém!

É NATAL

 



A liturgia deste dia é, toda ela, um hino ao amor de Deus. Canta a iniciativa desse Deus que, por amor, se vestiu da nossa humanidade e “estabeleceu a sua tenda entre nós”. Em Jesus, o menino nascido em Belém, Deus veio ter connosco e falou-nos, com palavras e gestos humanos, para nos oferecer a Vida plena e para nos elevar à dignidade de “filhos de Deus”.

Na primeira leitura, Isaías anuncia a chegada do Deus libertador. Ele é o rei que traz a paz e a salvação, proporcionando ao seu Povo uma era de felicidade sem fim. O profeta convida, pois, a substituir a tristeza pela alegria, o desalento pela esperança.

A segunda leitura apresenta, em traços largos, o plano salvador de Deus. Insiste, sobretudo, que esse projeto alcança o seu ponto mais alto com o envio de Jesus, a “Palavra” de Deus que os homens devem escutar e acolher.

O Evangelho desenvolve o tema esboçado na segunda leitura e apresenta a “Palavra” viva de Deus, tornada pessoa em Jesus. Sugere que a missão do Filho, “Palavra” viva de Deus, é completar a criação primeira, eliminando tudo aquilo que se opõe à vida e criando condições para que nasça o Homem Novo, o homem da vida em plenitude, o homem que vive uma relação filial com Deus.


PALAVRA DE VIDA.

É na noite que é belo acreditar na luz… Era a noite para este casal em viagem e, para mais, no momento em que a mulher devia dar à luz. Nunca há lugar para aqueles que incomodam. É então, na obscuridade de um estábulo, que a luz aparece para iluminar não somente este lugar bem sombrio, mas o mundo inteiro tantas vezes tão mergulhado na noite da dúvida e da violência. Era a noite para estes pastores em cuja palavra havia tanta dificuldade em acreditar, por estar muitas vezes longe da verdade. Ora, é a eles que a boa nova é anunciada para que ela não cesse de seguida de se transmitir de geração em geração. Uma luz rasga então a noite da Judeia, é a luz da glória do Senhor e o anúncio da paz sobre a terra aos homens que Deus ama. Não espanta que esta criança acabada de nascer proclame mais tarde: «Eu sou a luz do mundo». Esperar é levantar os olhos quando ainda é noite, para descobrir a luz mais forte que a noite.

domingo, 24 de dezembro de 2023

UMA LUZ

 



A liturgia desta noite envolve-nos nessa incrível história de amor que Deus quis viver com os homens. Fala-nos de um Deus que não hesita em vir ao encontro dos seus filhos peregrinos na terra para os abraçar, para fazer caminho com eles e para lhes dar Vida. Nesta noite, Deus apresenta-Se aos homens na figura de uma criança, frágil e indefesa, e pede-nos que o acolhamos no nosso coração e na nossa vida.

Na primeira leitura, um profeta anuncia a chegada de “um menino”, da descendência de David, dom de Deus ao seu Povo; esse “menino” eliminará a guerra, o ódio, o sofrimento e inaugurará uma era de alegria, de felicidade e de paz sem fim.

O Evangelho apresenta a realização da promessa profética: Jesus, o “Menino de Belém”, é o Deus que vem ao encontro dos homens para lhes oferecer – sobretudo aos pobres e marginalizados – a sua salvação. A oferta da salvação que, através desse “Menino” nos é feita, vem embrulhada com ternura e amor. Tem, portanto, o selo de Deus.

A segunda leitura convida-nos a reconhecer a graça de Deus que nos foi manifestada com a vinda de Jesus; e propõe que respondamos a esse dom com uma vida autêntica e comprometida, que nos leve a identificar-nos com Cristo e a realizar as suas obras.

https://www.dehonianos.org/

O Presépio somos nós.




Cada Homem é o presépio onde Deus nasce. Os presépios que se armam e, depois, tranquilamente se arrumam, os presépios a que reservamos um prazo determinado (e não mais do que isso), os presépios que apenas ilustram a inofensiva nostalgia dos símbolos não são presépios de verdade.
O Presépio somos nós.
É dentro de nós que um Deus nasce.
Dentro destes gestos que em igual medida a esperança e a sombra revestem. Dentro das nossas palavras e do seu tráfego sonâmbulo. Dentro do riso e da hesitação. Dentro do dom e da demora. Dentro do calor da casa e do relento imprevisto. Dentro do declive e da planura. Dentro da lâmpada e do grito.
A nossa estirpe é a dos recém-nascidos.
Qualquer que seja a nossa idade ou a estação em que nos encontremos a viver, a verdade é que somos, até ao fim, uma coisa no seu começo. E o presépio confirma que o nascimento é estrutura fundante da vida.

| Cardeal D. José Tolentino Mendonça.




Projeto de salvação

 


Neste último Domingo do Advento, a liturgia coloca-nos, uma vez mais, frente a frente com o projeto de salvação que Deus tem para oferecer a todos os seus filhos e filhas. Esse projeto, anunciado já no Antigo Testamento, torna-se uma realidade concreta, tangível e plena com a Encarnação de Jesus.

A primeira leitura apresenta a “promessa” de Deus a David. Deus anuncia, pela boca do profeta Natã, que nunca abandonará o seu Povo nem desistirá de o conduzir pelos caminhos da história. A “promessa” de Deus irá concretizar-se num “filho” de David, através do qual Deus oferecerá ao seu Povo a estabilidade, a segurança, a paz, a abundância, a fecundidade, a felicidade sem fim.

A segunda leitura chama ao projeto de salvação, preparado por Deus desde sempre, “o mistério”; e garante que, em Jesus, esse projeto se manifestou a todos os povos, a fim de que a humanidade inteira integre a família de Deus.

O Evangelho refere-se ao momento em que Jesus encarna na história dos homens, a fim de lhes trazer a salvação e a vida definitivas… E mostra como a concretização do projeto de Deus só é possível quando os homens e as mulheres que Ele chama estão disponíveis para dizer “sim”, acolher Jesus e apresentá-l’O ao mundo.

Celebrar este domingo, meditar a importantíssima missão confiada a Maria e a resposta tão generosa que não hesitou em dar ao Senhor convida-nos também a nos interrogarmos sobre a nossa própria missão: o que é que Deus, na nossa humilde medida, nos confia? Em quê, por quê, conta Ele com cada um de nós? Para que seja verdadeiramente Natal, dentro de alguns dias, na nossa terra, Ele tem sem dúvida necessidade dos discípulos do seu Filho… Professamos hoje a nossa fé num Deus que, diz São Paulo, tem o poder de nos confirmar (segunda leitura): acendendo a nossa quarta vela do Advento, que esta força seja verdadeiramente reavivada nos nossos corações.

PALAVRA DE VIDA.

Maria, humilde jovem de Nazaré, fervorosa crente judia, esperava a realização da promessa de Deus. Ela entra em diálogo com Deus, é a sua Anunciação. Deus, como sempre, toma a iniciativa: Ele vem, de improviso, ao encontro daquela que encheu de graças e com a qual Ele já está. Maria está perturbada porque Deus surpreende sempre. Deus tranquiliza-a, lembrando-lhe que é Ele que toma a iniciativa. Ele quer associar uma das suas criaturas ao seu projeto de salvação: o filho chamar-se-á “Jesus”, “Deus salva”. Maria interroga antes de dar a sua resposta: “Como será isso?” Ela procura esclarecer a sua fé. Deus responde-lhe, assegurando-lhe a sua presença pelo seu Espírito, e Ele dá-lhe um sinal, porque sabe que as suas criaturas precisam de sinais para crer: a sua prima conceber.


https://www.dehonianos.org/

sábado, 23 de dezembro de 2023

Que, neste Natal, sejas amor



Que, neste Natal, mais do que tudo, sejas. Sejas de verdade.

Que, neste Natal, sejas o abraço que refugia.

Que, neste Natal, sejas o sorriso que abraça.

Que, neste Natal, sejas a mão que segura.

Que, neste Natal, sejas o olhar que toca.

Que, neste Natal, sejas a ternura que cura.

Que, neste Natal, sejas o colo que cuida.

Que, neste Natal, sejas a palavra que fala do coração, ao coração.

Que, neste Natal, sejas a presença que conforta.

Que, neste Natal, sejas o gesto que salva.

Que, neste Natal, sejas a vida que ama.

Que, neste Natal, sejas a luz que acende todas as estrelas. A luz que acende a chama da esperança.

Que, neste Natal, sejas a paz que abraça a alma. A paz que serena o coração.

Que, neste Natal, sejas o lado bom, a parte bonita. Do dia, da vida, do mundo. Para alguém.

Que sejas o milagre de Natal de alguém. Que faças sorrir. Só por seres, por estares, por existires. Com amor.

Que, neste Natal, mais do que tudo, sejas amor.

Talvez descubras que é tudo o que importa. E talvez descubras que o verdadeiro sentido do Natal (e de tudo) é continuar a sê-lo, todos os dias. Sempre. E a encontrá-lo também.

Sê Natal. Feliz Natal.

Daniela Barreira

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

UM NATAL A RECLAMAR ANGIOPLASTIA ESPIRITUAL...



Abrenúncio, credo!... Ora vejam lá as coisas que eu aconselho neste Natal: remover o colesterol espiritual e tudo o mais que embatuca e atrofia a beleza do coração!... É uma hemodinâmica especial: ih-ih-ih-ih, as coisas que eu sei! Vós, porém, caros leitores, mesmo que fiqueis a pensar que eu já não fecho bem a gaveta, “sabeis em que tempo estamos” (Rm 13, 11). A história destes tempos brilha com o progresso sustentável que nos vai oferecendo. Quando, porém, se desvia da sua verdadeira rota, logo escurece o seu brilho e entra em crise, crise ruidosa e diversificada, o cabo dos trabalhos! Tal como os romanos naquele tempo o sabiam, também nós, hoje, sabemos em que tempo estamos. São os nossos tempos, são o que são, e pronto, ponto! São Paulo, porém, no meio de tudo o que de bem e mal ia acontecendo por aquelas bandas, arrepiando uns, matando outros e alegrando a muitos, sempre apelava à fortaleza, à coerência de vida, à alegria, à esperança, à confiança no futuro. Dois mil anos depois, nós não podemos ser uns pobres jeremias a vaticinar desgraças e mais desgraças, só desgraças. É certo que mesmo que não queiramos admitir que as há, lá isso há, é verdade, há muitas e variadas desgraças e desgracinhas. No entanto, sabendo bem o tempo em que estamos, é de assumir que já “chegou a hora de nos levantarmos do sono porque a noite vai adiantada e o dia está próximo” (Rm 13, 11). Sim, a noite da história já vai adiantada, não tanto quanto desejávamos, mas lá vai indo. O galo já canta, o raiar da aurora está próximo. Importante é que acordemos, nos levantemos do sono, façamos a devida ginástica matinal e entendamos que tudo tem remédio quando o diagnóstico, a posologia e os cuidados a ter batem na muche. Não são as crises e as desgraças que têm a última palavra, muito menos qualquer figurão deste mundo com elevadas pretensões de a ter. Jesus veio-nos dizer e provar que a última palavra é mesmo d’Ele. Dando a vida, foi Ele e mais ninguém quem nos resgatou da triste situação em que nos encontrávamos. Foi Ele quem nos rasgou caminhos novos a percorrer. Se os aceitarmos, fazem de nós protagonistas e parte das soluções, desde que, com Ele, metamos mãos à obra, ‘abandonemos as obras das trevas e nos revistamos das armas da Luz’ (Rm13,12). Jesus quis mesmo contar connosco e já se encontra à nossa porta. Escuta lá um pouquinho..., escuta melhor.... não ouves a aldraba da porta a bater?... Quem ouvir o seu toque, quem escutar a sua voz e lhe abrir a porta, Ele entrará, sentar-se-á à mesa do anfitrião e ceará com ele (cf. Ap 3, 20).
Quando alguém vem por bem e bate à porta, ninguém tarda em abrir, convidando a entrar, acolhendo com gosto e alegria, primando na hospitalidade. Muito mais quando se trata de receber um grande amigo, com saudades mútuas de um abraço de partir costela. A refeição conjunta, regra geral, dá para saber e partilhar notícias e experiências de vida, fortalece a amizade, leva a pôr a conversa em dia, muitas vezes resolve situações delicadas e aborda assuntos de interesse, seduz a olhar o futuro com maior esperança. Jesus é esse amigo por excelência que vem ao nosso encontro, vem por bem e por sua própria iniciativa, de forma despretensiosa, simples e humilde. Reconhecê-lo e deixá-lo entrar no coração de cada um tem consequências de cateterismo em angioplastia espiritual. Que me perdoem os médicos por esta aparente intromissão em seara alheia. Também não sou barbeiro cirurgião, sangrador e tira dentes ao jeito de outros tempos. Mas este tratamento aos efeitos do colesterol espiritual e quejandos, é mesmo eficaz se bem aplicado. Ora escrevam lá: desatravanca os obstáculos que emperram o respirar e a beleza da vida. Remove as gorduras rancorosas que criam mal-estar e promovem maledicências, intrigas, divisões e guerras sociais e familiares. Alarga os caminhos de circulação para que a vida possa pulsar e correr com entusiasmo e alegria, sem dor nem cansaço no esforço de fazer o bem. Normaliza o fluxo da graça de Deus para que se possa existir e agir saudavelmente. Aumenta a capacidade do coração em amar mais e melhor. E ainda por cima, não são precisos stents, nem balões e outros apetrechos. Este medicamento-tratamento, que é Jesus, não atua dolorosamente, não exerce violência, não causa alergias nem intoxicações, não reclama picas, corpos estranhos ou próteses. Apenas se propõe, aplica-se com ternura e delicadeza, desejando que o tomemos como bom amigo e saudável companheiro de viagem. Nunca nos abandona, não nos deixa sozinhos, não nos trai, não usa de maus-tratos. Conhece cada um de nós muito melhor que cada um de nós a si próprio. E como afirmou o Papa Francisco, Ele começou a falar-nos “a partir daquela ‘cátedra’ singular que é a manjedoura”. Com a sua encarnação, aliás preparada ao longo de séculos, fez-se pobre para nos enriquecer com a sua pobreza, incitando-nos a aceitar livremente o despojamento e as perseguições. Com a sua obediência ao Pai e na vida oculta em Nazaré, repara as nossas rebeldias sem sentido e insubmissões rabugentas. Com a sua palavra e a cura de doentes, purifica e toma sobre si as nossas enfermidades e doenças. Com a sua oração, convida-nos a sermos pessoas contemplativas, agradecidas e orantes. Com a sua ressurreição, justificou-nos, venceu a morte e aos mortos deu a vida. Durante todo o seu percurso terreno, não viveu para si mesmo, viveu para nós. Hoje, permanece indispensável advogado a interceder por nós junto do Pai. É Ele que tem, no Juízo final, o pleno direito de julgar definitivamente as obras e os corações dos homens, enquanto redentor do mundo. Aí, será revelado o procedimento de cada um e os segredos do seu coração. Aí, será condenada a incredulidade culpável, que não teve em conta a graça por Ele oferecida. Aí, será julgada a nossa atitude em relação ao próximo: o que fizestes ou não fizestes aos outros foi a Mim que o fizestes ou deixastes de fazer (cf. Mt 25).
Antes que isso aconteça, porém, é bom ter em conta o que Jesus também disse através de São João Evangelista, no Apocalipse. Diz Ele: “Conheço a tua conduta: não és frio nem quente! Quem dera que fosses frio ou quente. Porque és morno, nem frio nem quente, estou quase a vomitar-te da Minha boca. Porque dizes: ‘Sou rico! E agora que sou rico, não preciso de mais nada’. Pois então escuta: és infeliz, miserável, pobre, cego e nu. E nem sabes disso. Queres um conselho? Queres mesmo ficar rico? Então compra o Meu ouro, ouro puro, derretido no fogo. Queres vestir bem? Compra as minhas roupas brancas, para cumprir a vergonha da tua nudez. Queres ver? Pois Eu tenho o colírio para os teus olhos. Quanto a Mim, repreendo todos aqueles que amo. Portanto, sê fervoroso e muda de vida. Já estou à porta e bato. Quem ouvir a minha voz e abrir a porta, entro em sua casa e janto com ele, e ele comigo. Ao vencedor, darei um prémio: vai sentar-se comigo no Meu trono, assim como Eu venci e estou sentado com Meu Pai no Seu trono. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 3, 14-22).
Celebrar o Natal em família e em comunidade, com espírito de gratidão e fé, é importante, muito útil e bonito. Celebrá-lo à revelia do homenageado, sem consequências na vida pessoal, familiar e comunitária, é paupérrimo e cansativo!
Que seja um Natal Santo, em todos e para todos!

D. Antonino Dias - Bispo Diocesano
Portalegre-Castelo Branco, 22-12-2023.

Momentos com Deus

                    

Não procures fora. Não procures que os outros te deem as respostas, encontra-as, abre-te a “elas” no caminho da vida. No que és e no que os outros te trazem em e na relação. Escuta (te), escuta (Me) dentro de ti. O Que vieste aqui fazer foi aprender a escutar e a ver. A escutar e ver Deus em cada pessoa, em cada momento e espaço de tempo, em cada movimento em cada ação. Tudo o que és e tudo o que te rodeia é Deus e por isso, tudo se move por amor. Não vejas menos que isso, não te movas por mais nada, pois assim tu estás em mim e eu em ti.

Estejas onde estiveres aí está Deus. Cada dia que vives, cada abrir e piscar de olhos, cada sorriso, cada abraço é Deus que se expressa em e por ti. Cumpre, cumpre o que és na tua maravilhosa e perfeita essência. Não tenhas medo, porque o Pai está contigo.

Carla Correia

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Deixa lá, não te chateies.



Querida amiga já te aconteceu de chegares a casa de uma reunião que não correu tão bem como gostarias e começas a desabafar e ouves: “Deixa lá, não te chateies.”? Outras vezes somos nós a dizer aos outros, como se os quiséssemos proteger, desvalorizando o acontecimento- “Deixa lá, isso passa!”. A verdade é que, quando é connosco, doí muito o sentido de injustiça ou fracasso, mas não doí menos quando vemos que alguém que amamos sente isso. Quando um amigo, filho, companheiro nos demonstra um sentimento de revolta ou injustiça somos assolados por uma vontade terrível de “partir tudo e “ fazer justiça pelas próprias mãos” que é escondido pela sublime expressão: “Deixa lá, não te chateies”. Ficamos protegidos, mas não consolados.

No outro dia, dei por mim a dizer isso, e a sugerir que o melhor era mesmo afastar para não ter problemas e depois dei por mim a pensar… a sério que disseste isso? A sério que te resignas assim? Que queiras afastar o “cálice” ainda compreendo mas recusar lutar e persistir não, isso não parece bem!

É mais fácil deixar para trás o que nos incomoda e perturba do que enfrentar as tormentas que nos causam. Mas ao afastar estamos a perder a oportunidade de mudar alguns rumos, e acima de tudo permitir um crescimento pessoal que nos faz ser resilientes, mas não resignados. Temos de ter coragem para questionar, sugerir e apontar caminhos, mesmo que a resposta que levemos seja um pouco paternalista do género: ”Deixa lá, não te chateies”.

E tu amiga, o que te chateia?

Raquel Rodrigues

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

A tempestade passará



Dedicamos muito tempo da nossa vida a lutar contra a escuridão. As tempestades parecem suceder-se ao ponto de, por vezes, nem sabermos sequer se ainda é a mesma. Mas passam. Todas passam. Porque na vida o pouco que fica não é a tristeza.

Sentes-te perdido, mas não estás. A guerra constante contra tudo o que nos rouba a paz que merecemos consome muitas das nossas forças. Sentimo-nos longe de casa, longe do caminho, longe até do que somos.

O sentido da tua vida, mesmo quando estás no meio de uma trovoada, deve ser manteres-te fiel ao que amas e à certeza de que és amado. As tempestades passam, o amor não.

É difícil manter o rumo quando é necessário enfrentar os medos, em direção aos sonhos. Muita gente passa a sua vida a fugir dos medos, deixando que sejam eles, na verdade, a determinar um caminho que não leva a lado algum e que apenas serve para desperdiçar esta preciosa vida que nos foi confiada.

Não te esqueças de ir ao encontro de quem está em dificuldade a fim de o socorrer, animar e proteger. Não desistas dos outros nem de ti. Assume com coragem os teus momentos mais frágeis e pede ajuda. Acredita que pedir ajuda é mesmo o contrário de desistir.

A cada madrugada de bonança na vida agradece o que a tempestade curou e fortaleceu em ti. Algumas vezes terás tido grandes perdas… mas continuas aqui e isso é sinal de que, apesar de tudo, venceste a escuridão.

Em breve, a paz será atacada por mais uma tempestade qualquer e tu terás de decidir mais uma vez se lutas ou não, se acreditas no amor ou se é desta que decides que já não queres ter mais forças…

A tempestade passará. E tu?


José Luís Nunes Martins

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Porque é que Maria se levanta e parte?




Um dos biblistas que comentam esta página, Joseph A. Fitzmyer, não tem dúvidas: «o que se pretende indicar [com a viagem apressada de Maria] é a sua reação ao que o mensageiro celeste acaba de lhe comunicar». O acolhimento do dom de Deus que lhe foi comunicado mexe com a sua vida, altera a sua rotina, sugere-lhe que vá além. O sim de Maria é dinâmico. A sua partida é assim consequência de uma experiência de amor e de fé conscientemente iniciadas. A viagem constitui uma forma clara e comprometida de resposta.
Com Maria, aprendemos que se nos levantamos e partimos é porque primeiro Deus vem ao nosso encontro. Por muito que isso nos pareça surpreendente, Ele entra na nossa história. O contato com o Seu amor incondicional, a Boa Nova desse amor é a experiência que deve preceder tudo.
Quando Maria se levanta e parte o que é que descobre? Descobre a beleza do protagonismo de Deus na história. Como lhe diz Isabel, ela é de fato feliz porque acreditou. Maria relê toda a sua história e a história do seu povo como uma história de salvação, onde é possível notar a cada momento a fidelidade de Deus. E, por isso, Maria pode cantar no seu cântico de louvor a desfatalização da história que Deus opera através do Seu Filho. Temos razões para crer. Temos razões para cantar.
Que a urgência que apressou o passo de Maria deflagre também em nós como uma alegria que cresce e que já nada pode travar.
Termino com palavras do comentário de Santo Ambrósio à cena da Visitação. Santo Ambrósio escrevia: «Vede bem que Maria não duvidou… e por isso obteve o fruto da sua fé. Feliz és tu porque acreditaste. Mas felizes sereis também vós se tendo ouvido, acreditardes. Pois cada alma que acredita, concebe e gera o Verbo de Deus».
É essa agora a nossa tarefa.

 Cardeal D. José Tolentino Mendonça


segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Brilha




Abro o meu coração à luz do Natal.

Abro o meu coração à luz do amor.

Essa luz que não é de “faz de conta”, mas que é eterna dentro de cada um.

Uma luz que ilumina todos os dias do ano. Os dias mais sombrios, as palavras menos bonitas ou as emoções mais nubladas; uma luz que aquece o coração.

A luz que chega para indicar o caminho, como a estrela de Belém. O caminho da esperança e da paz.

A luz que mostra o essencial, mesmo que invisível aos olhos, e faz abraçar a experiência de cada dia, levando a descobrir o que de mais maravilhoso existe, viver...

Uma luz que nunca se apaga, porque me (te) pertence; porque Eu sou, porque Tu és. Brilha!


Carla Correia

domingo, 17 de dezembro de 2023

Alegrai vos!

 




Como cenário de fundo das leituras do 3.º Domingo do Advento está a certeza de que Deus tem um projecto para nos fazer passar das “trevas” para a “luz”. Essa Boa Notícia deve encher de alegria o coração de todos os filhos e filhas de Deus.

Na primeira leitura, um profeta pós-exílico apresenta-se aos habitantes de Jerusalém com uma “boa nova” de Deus. A missão deste “profeta”, ungido pelo Espírito, é anunciar um tempo novo, de vida plena e de felicidade sem fim, um tempo de salvação que Deus vai oferecer aos “pobres”.

Como é que Deus atua no mundo? Não é, normalmente, através de manifestações estrondosas e espetaculares, que deixam a humanidade abismada e assustada; mas é através dos gestos “banais” desses profetas a quem Ele confia a missão de lutar contra as forças da opressão e da morte e a quem Ele chama a testemunhar, no meio dos “pobres”, o amor, a liberdade, a justiça, a verdade, a vida. Cada crente é um profeta, chamado a ser testemunha de Deus e sinal vivo do seu amor, da sua justiça e da sua paz. Como é que eu me situo face a isto? Sinto-me profeta, chamado a testemunhar o amor, a vida, a liberdade de Deus? Os “pobres”, os oprimidos, os excluídos encontram em mim um sinal vivo do amor de Deus? Tenho a coragem de arriscar, de lutar, de dar a cara para que o mundo seja melhor?

Os versículos finais do texto apresentam a reação agradecida e jubilosa do Povo à ação salvadora de Deus… A descoberta do amor e da presença libertadora de Deus não pode senão conduzir ao louvor, à adoração, à alegria. Sei ser grato ao Senhor pela sua presença amorosa, salvadora e libertadora na vida do mundo e na minha vida?

O Evangelho apresenta-nos João Baptista, a “voz” que prepara os homens para acolher Jesus, a “luz” do mundo. O objetivo de João não é centrar sobre si próprio o foco da atenção pública; ele está apenas interessado em levar os seus interlocutores a acolher e a “conhecer” Jesus, “Aquele” que o Pai enviou com uma proposta de vida definitiva e de liberdade plena para os homens.

Na segunda leitura Paulo explica aos cristãos da comunidade de Tessalónica a atitude que é preciso assumir enquanto se espera o Senhor que vem… Ele pede aos discípulos de Jesus que sejam “santos” e irrepreensíveis, que vivam alegres, em atitude de louvor e de adoração, abertos aos dons do Espírito e aos desafios de Deus.O caminho cristão deve ser percorrido na alegria… O cristão é alegre, porque sabe para onde caminha e está certo de que no final da caminhada encontra os braços amorosos de Deus que o acolhem e o conduzem para a felicidade plena, para a vida definitiva. Nem os sofrimentos, nem as dificuldades, nem as incompreensões, nem as perseguições podem eliminar essa alegria serena de quem confia no encontro com o Senhor. É essa alegria serena e essa paz que marcam a nossa existência e que brilham nos nossos olhos, ou somos seres derrotados, desiludidos, que se arrastam pela vida mergulhados no desespero e na solidão, sem rumo e ao sabor da corrente e das marés?
O caminho cristão deve ser percorrido, também, num diálogo nunca acabado com Deus. O crente é alguém que “ora sem cessar” e “dá graças em todas as circunstâncias” pelos dons de Deus, pela sua presença amorosa, pela salvação que Deus não cessa de oferecer em cada passo da caminhada. Além disso, é falando com Deus que nos apercebemos dos seus projetos e dos passos que ele nos convida a dar. Conseguimos, no meio da agitação do dia a dia, encontrar espaços para o diálogo com Deus? Sentimo-nos gratos por esses dons que, a cada instante, Deus nos oferece?
O caminho cristão deve ser percorrido numa atitude de permanente atenção aos dons e aos desafios do Espírito. Procuramos estar atentos às propostas de Deus, ou deixamo-nos prender num esquema de instalação, de rotina, de preconceitos que não nos deixam acolher e responder aos apelos e à novidade de Deus?

https://www.dehonianos.org/

sábado, 16 de dezembro de 2023

Advento



No Advento são-nos apresentados vários modelos que representam para nós, na sua exemplaridade, um desafio à transformação, ao rasgar do nosso coração para acolher o Jesus que vem.

Hoje, o modelo apresentado é a figura de João Batista. João Batista vem para sobressaltar. A sua voz é um sobressalto.
Queridos irmãos, para quem está completamente contente, completamente coincidente, completamente realizado com aquilo que tem, com aquilo que vê em seu redor, não haverá Natal. O Natal chegará para os corações que se abrem em insatisfação, em procura, em pergunta, em desejo, em necessidade vital de que Jesus venha para transformar, para salvar a nossa história. Por isso, João Batista é esta sentinela que nos diz: “É preciso fazer penitência.” Isto é: é preciso afastar-se da vida que vivemos, porque às vezes estamos tão colados, tão preocupados com o que está diante dos nossos olhos que perdemos todo o sentido crítico.
Mas João Batista é também uma grande figura da humildade. É aquele que diz: “Eu não sou digno daquele que virá depois de mim.” De fato, se nós nos armamos no nosso narcisismo em centros do mundo – “Eu é que sei, eu é que faço, eu é que posso conseguir” – nunca perceberemos isto que João Batista diz: “Depois de mim vai chegar quem é mais forte do que eu.” Isto é, nunca nos colocamos na brecha, na fratura, na fronteira, nunca somos sentinelas de nada.
Nós somos anunciadores, somos sentinelas, somos servidores, somos visionários, nós documentamos aquele que há de vir e que é mais forte do que eu e do qual não somos dignos de desatar a correia das sandálias.
Queridos irmãos, fujamos do símbolo pelo símbolo, demos carne e osso ao Natal, tornemos o Natal encarnado nas nossas vidas, testemunhando que no centro está a pessoa de Jesus e o que Ele significa na vida de cada um de nós. Aquilo que Job dizia a plenos pulmões e com a carne em fogo: “Eu sei que o meu Redentor está vivo!” É essa palavra que nós temos de dizer: Eu sei que o meu Redentor está vivo! Sem esta palavra não há consolação. Há imaginação, há pieguice, há tradição, há isso tudo mas não há consolação. “Consolai. Consolai o meu povo, diz o Senhor.”

| Cardeal D. José Tolentino Mendonça


Pode ser uma imagem de texto que diz "Nata chegará para corações que se abrem em insatisfação, em procura, em pergunta, em desejo, em necessidade vital de que Jesus venha parartransformar,para para salvar nossa história. γεν Toleutino Fanty"
Todas as reações:
1,3 mil

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

A MAIS VALIOSA PRENDA PARA SI E PARA OS SEUS...



Vamos celebrar o nascimento de Jesus. Mesmo continuando a não haver lugar para Ele na hospedaria do coração de muitos, a história dividiu-se no antes d’Ele e no depois d’Ele. E a sociedade continua a transformar-se pela força persuasiva da sua palavra, dos seus gestos, do seu gosto de servir, do seu passar pelo mundo a fazer o bem, da sua atenção sobretudo aos mais necessitados e sofridos. O mundo só mudará quando cada um estiver disposto a mudar a sua mente e vontade, o seu coração, a sua maneira de ser, estar e fazer. Não só, mas sobretudo pela força da Pessoa e da Palavra de Cristo Jesus.
Nesta época de tanta magia, música, alegria e beleza, em cuidados de preparação para a celebração do seu nascimento, e também em busca de presentes para oferecer a familiares e amigos, como seria desejável que ninguém esquecesse que, como causa e origem de todo este corre-corre, e de todos os presentes que se possam ofertar ou receber, está este presente por excelência, o maior presente de todos os presentes, o presente que Deus partilha com toda a humanidade: o seu próprio e único Filho, Ele próprio também Deus, cheio de graça e de verdade. E porquê esta dádiva de Deus? Porque, de entre todas as criaturas visíveis, o homem é, sem dúvida, a única criatura que “Deus quis por si mesma” e ama incondicionalmente. Dotou-o com a capacidade ‘de conhecer e amar o seu Criador’ (GS12. 24), com a capacidade ‘de se conhecer, de se possuir e de, livremente, se dar e entrar em comunhão com outras pessoas”. Mais: só ele foi “chamado, pela graça, a uma Aliança com o seu Criador, a dar-lhe uma resposta de fé e amor que mais ninguém pode dar em seu lugar’ (CIgC357). E embora o homem, pelo respeito à sua liberdade e consciência, não seja pressionado a dar essa resposta, é bom que o faça, positivamente, não só porque muito lhe convém, mas também porque acaba por ser uma exigência da gratidão pessoal para com Aquele a quem o homem tudo deve. É uma obrigação, digamos, pois, amor com amor se paga.
É certo que nem sempre isto aconteceu nem acontece ainda hoje. O homem, “desde o princípio da história, seduzido pelas forças do mal, abusou da sua liberdade, levantando-se contra Deus e pretendendo atingir o seu fim fora de Deus” (GS13). Assim perdeu “a santidade e a justiça originais que tinha recebido de Deus, não somente para si, mas para todos os seres humanos” (CIgC416). Deus, porém, não abandonou o homem. Apesar de ter usado mal da sua liberdade, querendo mesmo usurpar o lugar de Deus, nunca Deus, como Pai extremoso, deixou de amar a todos os homens, tal como são, com amor incondicional. Não para que continuassem a usar mal da sua liberdade e a viver sem rei nem roque, mas para que pudessem reconhecer que só o amor, a verdade e a justiça os libertará. E se Deus, apesar dessa rutura da harmonia e da comunhão, se, apesar disso, Ele prometeu ao homem, logo no início, uma descendência capaz de retomar o projeto divino com triunfo sobre o mal (cf. Gn 3, 15), mais tarde, através do profeta Isaías, anunciou à humanidade que, para isso, uma jovem “conceberá e dará à luz um filho, e chamá-lo-á Emanuel” (Is 7, 14; Mt 1,23). Em fidelidade a este anúncio, e para além de toda a expectativa, Deus enviou o seu “Filho muito-amado”, Jesus, filho duma Virgem, da Virgem Maria, que o concebeu pela ação do Espírito Santo. Nasceu por causa ‘de todos e para todos’. O seu nascimento é anunciado como uma grande alegria ‘para todo o povo’ (Lc 2, 10). É o único nome divino que ‘a todos’ traz a salvação e pode, desde agora, ser invocado ‘por todos’, pois ‘a todos’ se uniu pela Encarnação, de tal modo que ‘debaixo do céu não existe outro nome dado aos homens pelo qual possamos ser salvos” (At 4,12).
O Filho de Deus assumiu a natureza humana numa misteriosa e admirável união da natureza divina e da natureza humana numa só Pessoa, a Pessoa de Jesus. E tal como se apresentou, a sua presença divina, a sua majestade e glória não assustam nem afastam, não humilham nem intimidam. Antes pelo contrário, atraem, geram empatia: “Vinde a Mim ‘todos vós’ que estais cansados e oprimidos...aprendei de Mim que sou manso e humilde coração, e encontrareis descanso para as vossas vidas. Porque a Minha carga é suave e o Meu fardo é leve” (Mt 11, 28-30). Ele não veio para se impor com arrogância nem para ser servido como importante e subserviência. Veio como amigo, em obediência ao Pai, para se propor como caminho, verdade e vida e servir, dando a vida ‘por todos’, amigos e inimigos, não fazendo acessão de pessoas. Nasceu e ‘foi-nos dado’, entregou-se ‘por nós’, morreu dando a vida ‘por todos’, ressuscitou e ficou connosco para bem ‘de todos’ e de cada um, do leitor também.
Como refere São Paulo, sendo “de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si próprio; assumindo a condição de servo, tornou-se semelhante aos homens; humilhando-se ainda mais, obedeceu até à morte, e morte de cruz” (cf. Fil 2, 5-8).
Toda a sua vida “foi um contínuo ensinamento: os seus silêncios, os seus milagres, os seus gestos, a sua oração, o seu amor pelo homem, a sua predileção pelos pequenos e pelos pobres, a aceitação do sacrifício total na cruz pela redenção do mundo, a sua ressurreição – tudo é atuação da sua palavra e cumprimento da revelação” (JPII, CT9).
Este Menino é, de facto, a prenda por excelência de Deus a toda a humanidade, a provar-lhe o grande amor que sempre lhe manifestou, caminhando com ela, falando-lhe como amigo, revelando-se paulatinamente numa pedagogia e condescendência divina sem igual.
Entre nós, ninguém gosta que alguém recuse um presente que lhe é oferecido com tanta dedicação, amor e sacrifício. Que bom seria se ninguém recusasse ou fosse indiferente perante esta prenda de Deus, como prova do seu amor infinito para com ‘todos, todos, todos’. Que bom seria se Jesus encontrasse lugar na hospedaria do coração de todos e não fosse rejeitado, descartado, sobretudo na pessoa dos pobres e sofridos. Acolher o dom que é Jesus, deixar-se amar e transformar por Ele, levará cada um a partilhar esta alegria e a tornar-se um dom para os outros, anunciando e vivendo em família, no trabalho e na sociedade este amor de Deus manifestado em Cristo Jesus.


D. Antonino Dias - Bispo Diocesano
Portalegre-Castelo Branco, 14-12-2023.