quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Não deixem nada por dizer



Recebi o telefonema entre o rumor dos dias.
Do outro lado, uma voz marcada pela dor:
— Padre, venha... o meu marido está a morrer. Ele pediu para falar consigo.
Deixei tudo.
Não por heroísmo, mas porque há apelos que não permitem espera.
Peguei num ritual, mas no caminho percebi que nenhuma palavra rezada seria suficiente.
Mastiguei frases, procurei respostas —
mas algo dentro de mim sussurrou:
Não vás para falar. Vai para estar.
Cheguei.
A esposa esperava-me à porta, olhos rasos, voz trémula:
— Padre, não lhe diga que ele vai morrer. Aqui em casa ninguém fala disso.
Assenti com o olhar.
Há silêncios que não se quebram — respeitam-se.
Entrei.
O Sr. Domingos sorriu-me com a serenidade dos que já viram o essencial.
O seu rosto era mapa de tempo: rugas como rios, olhos como poços.
Antes que eu dissesse qualquer coisa, falou:
— Eu sei que vou morrer, Padre.
E naquele instante, o quarto pequeno tornou-se templo.
Não havia medo, havia verdade.
Falámos — ou melhor, ele falou — da vida inteira:
das alegrias e das feridas,
das mãos que trabalharam,
dos risos, das perdas,
da esposa que amou,
do filho que foi o seu orgulho,
do Deus que tantas vezes procurou e por fim encontrou ali, entre o respirar cansado e a paz que o visitava.
Pediu perdão.
Mas não apenas pelos pecados — pediu perdão por ter sido humano,
por ter amado e falhado,
por ter vivido como todos nós: entre luz e sombra.
Quando terminou, sorriu e disse:
— Amei viver, Padre. E agora quero morrer em paz.
Falámos do funeral — ele quis escolher as leituras, as músicas, até as palavras que eu haveria de dizer.
Tudo com uma serenidade que desarma.
No fim, abraçámo-nos longamente,
sem pressa, como quem sabe que o tempo tem fim e o amor, não.
À saída, a esposa perguntou:
— A confissão demorou duas horas, Padre. Tinha assim tantos pecados?
Respondi-lhe com ternura:
— Não falámos só de pecados. Falámos da vida. E combinámos o céu.
Depois acrescentei:
— Agora é a sua vez, e a do vosso filho, confessarem-se com ele.
Voltei para casa leve,
como quem regressa de um santuário invisível.
Pouco tempo depois, o telefone voltou a tocar.
A mesma voz, agora ainda mais frágil:
— Padre... o meu marido partiu.
Fechei os olhos.
Na minha alma, um silêncio cheio de presença.
Não doía — ardia.
Porque a morte, quando vem assim, reconciliada,
é quase uma bênção.
E ecoaram-me as palavras de António Feio,
essas que são de todos nós:
“Não deixem nada por dizer.”
Porque falar é difícil, sim.
Dizer “amo-te” parece piegas,
dizer “perdoa-me” custa mais que qualquer penitência.
E por isso calamos —
adiamos —
fugimos.
Guardamos o amor no bolso, a verdade na garganta,
como se o tempo fosse eterno e a morte um rumor distante.
Mas o tempo é curto.
E o rumor é certo.
Por isso, não deixem nada por dizer.
Nem o amor, nem a dor, nem o medo.
Digam enquanto há ouvidos que escutam,
mãos que se tocam, olhos que se reconhecem.
Porque chega um dia — e chega sempre —
em que só o silêncio responde.
O Sr. Domingos partiu reconciliado com tudo e todos. Mas deixou-me, sem o saber, um sermão inteiro: o Evangelho de uma vida dita até ao fim.
Dias depois do funeral, a esposa e o filho procuraram-me.
Vieram com os olhos ainda marejados, mas com o rosto sereno.
Disseram-me:
— Padre, aquela visita fez-nos tão bem...
E continuaram:
— Afinal, o padre faz um trabalho que parece que não se vê. Mas quando o experimentamos, percebemos para que serve um padre.
Fiquei calado.
Porque há palavras que não se comentam — guardam-se.
E ali compreendi, mais uma vez,
que o sacerdócio é isto:
estar onde o mundo se desfaz e Deus começa. Ser presença quando já não há respostas. Ser silêncio habitado.
E nessa hora, percebi que o Sr. Domingos,
mesmo morto, continuava a evangelizar.
Porque ele também não deixou nada por dizer.



Padre João Torres

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