terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Que é pois o tempo?



Somos feitos de tempo, lavrados instante a instante

 pelos seus instrumentos

 
Sabemos todos o que é o tempo, mas ele continua a ser uma coisa difícil de
descrever. É como se nos faltassem subitamente palavras e o próprio tempo nos
impusesse um outro tempo para nos aproximarmos do que ele é. Há uma espécie
de lentidão necessária, um dobrar da língua ao qual Santo Agostinho, nas
“Confissões”, é bem sensível. Escreve ele: “Que é pois o tempo? Se ninguém me
pergunta eu sei, mas se desejo explicar a quem o pergunta não o sei.”

E, contudo, somos feitos de tempo, lavrados instante a instante pelos seus instrumentos:
conhecemos idades, estações, tempos mensuráveis e incontáveis, formas visíveis e
invisíveis de tempo. Por vezes, o tempo passa por nós com um passo tão subtil que
nem damos por ele; sem dilemas ou cesuras, ele como que flutua. Mas outras, o mesmo
tempo atormenta-nos, cerca-nos com a sua voracidade, insidia-nos, faz-nos escutar
cada vez mais perto os seus martelos, e damos por nós mais sós, vulneráveis à sua
obsidiante vertigem. O que é pois o tempo? Não sei se esta pergunta terá algum dia
cabal resposta. O importante, creio, é a compreensão de que este tempo que nos
atravessa, este tempo preciso, somos nós mesmos. Somos o instante que se prolonga.
Somos o duro desejo de durar, e isso não é senão tempo, duração.

Mas há uma sabedoria do tempo a redescobrir. O tempo não é apenas tempo. O tempo
é uma arte e pede de nós três coisas. A primeira é a necessidade de desfatalizarmos
o tempo. A mordedura de serpente do tempo é fazer-nos crer que já não temos tempo
e que tudo é irreversível, tudo passa apenas uma vez. O tempo visto assim é trágico
e fechado, experiência de pura perda, sem real possibilidade de transformação e,
ainda menos, de redenção. Tudo nos foge por entre os dedos sem que consigamos
colher a oportunidade, sem que possamos saborear o sentido. No polo oposto, o poeta
Rainer Maria Rilke ajuda-nos a pensar a ideia de aberto como projeto. E o aberto o que
é? É a possibilidade de cada um viver em abertura fecunda ao real, resumida assim:
“A nossa tarefa consiste em impregnar esta terra, provisória e perecível, tão
profundamente em nosso espírito, com tanta paixão e paciência que a sua essência
ressuscita em nós o invisível.” A segunda coisa que nos vem pedida é que entendamos
as nossas sucessivas crises em relação ao tempo (inseguranças, conflitos, atritos,
interrogações), mesmo se dolorosas, como formas de operacionalizar o tempo enquanto
lugar não só de fins mas de recomeços. São Gregório de Nissa dizia isso: “O tempo
é uma sucessão de começos.” E gosto do que escreveu Christiane Singer num livro
precioso que se chama “Do Bom Uso das Crises”: “Ao longo da minha vida, eu fui
aprendendo isto, que nos acontecem as crises para evitar que nos sobrevenham coisas
piores. E como exprimir o que é pior? O pior é ter tido a infelicidade de atravessar a vida
sem perguntas e sem naufrágios, o pior é ter ficado à superfície das coisas e nunca ter
acedido a uma outra dimensão.” O terceiro desafio é reaprendermos o tempo como dom
que nos ensina os múltiplos e inesgotáveis sentidos do dom. Aquilo que conta o pintor
japonês Hokusai no seu testamento tão conhecido: “Desde os 5 anos de idade que tinha
a mania de desenhar a forma das coisas; aos 50 anos produzi um número razoável de
desenhos, mas no entanto tudo o que fiz até aos 70 anos não é realmente digno do nota;
pelos 72 anos aprendi finalmente algo da verdadeira qualidade das aves, animais,
insetos e peixes e da natureza vital das plantas e das árvores; assim, aos 80 anos
deverei ter já feito algum progresso; aos 90 deverei ter penetrado ainda mais no mais
fundo sentido das coisas; aos 100 anos de idade deverei ter-me tornado realmente
maravilhoso; e aos 110, cada ponto, cada linha que eu desenhe deverá possuir
seguramente uma vida própria.”

[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2253 | 31/12/15

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