terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Agora nasce tu, por Tolentino Mendonça



Começo pedindo palavras à escritora Nélida Piñon, essa extraordinária narradora da nossa condição. Em “Livro das Horas” ela escreveu: “Cada qual narra a história da sua solidão. A que se está condenado mesmo quando cercado de familiares, tribos, séquitos, leis universais.” O Natal representa isso para nós. Talvez sedentos, talvez disfarçando um embaraço que nos mói, sentindo-nos incrivelmente sós, mesmo se acompanhados por pessoas, comidas e símbolos, aproximamo-nos da manjedoura e perguntamos: “Porque estamos aqui?”, “Como interseta a nossa vida o mistério que aqui se conta?”, “Que podemos secretamente esperar de tudo isto?” Porventura a única razão válida para estarmos aqui é uma que nos custa reconhecer: precisamos de um salvador. Cada um de nós precisa de ser salvo dessa solidão fundamental, ontológica e irremovível de que falava Nélida. A vida necessita de resgate. Sem isso a nossa travessia seria apenas inacabamento, uma espécie de ferida em aberto, uma pergunta sem resposta. Seria como se tivéssemos insistido junto de uma porta que continuou fechada ou de uma noite que não chegou a conhecer a metamorfose auroral.

Mesmo a quem não crê a manjedoura repete o seu anúncio: que Deus nos deu um salvador. E di-lo numa linguagem que universalmente se pode perceber. Na verdade, este salvador toma a nossa carne, assume em si as nossas trajetórias, partilha as nossas esperanças e desalentos, pisa este mundo, vibra com ele, ama, sofre e, como qualquer ser humano, é muitas vezes ferido. “Hoje, em Belém da Judeia, nasceu-vos um salvador” — revelam as narrativas evangélicas aos pastores. Estamos a dois mil anos deste anúncio e tão longe da Judeia, mas nestes dias, qualquer que seja a estação existencial em que nos situemos, esta palavra se revela verdadeira. E a chegada de um salvador opera um sobressalto. A nossa vida não só passa a valer mais: transforma-se também noutra coisa. Alcança um sentido, ganha uma força, recebe um entusiasmo que só Deus é capaz de inscrever. Agora o que somos não é só a sofrida indecisão, o balanço irresolúvel entre bondade e imperfeição, entre o que desejamos e o que não conseguimos.

Deus atua, de facto, de forma surpreendente e paradoxal. Conta com a fragilidade como força, explica-nos que não se vence a violência com a violência, nem a opressão com outra opressão

Há, claro, uma desproporção na forma como esta revelação nos é apresentada. As escrituras dizem, por exemplo, que o mal será erradicado, que o arsenal de guerra será ultrapassado, que toda a violência se extinguirá como cinza e que nós o veremos. “Mas como?” — justamente interrogamos. E resposta não podia ser mais desconcertante: “Porque um menino nasceu para nós. Um filho nos foi dado.” Deus atua, de facto, de forma surpreendente e paradoxal. Conta com a fragilidade como força, explica-nos que não se vence a violência com a violência, nem a opressão com outra opressão. É daqui que devemos partir: de um nascituro indefeso deitado numa manjedoura. Precisamos, para isso, de acreditar mais na potencialidade que tem a vida frágil, a vida nua. Deus ilumina e relança a vida na sua condição mais pequena, a vida mínima, a vida que apenas nasce, a vida estreme, sem retoques, sem ornamentos, a vida apenas. O desafio é acreditar nas possibilidades que esta vida desencadeia em nós.

O Natal deixa-nos com um presente nas mãos: confia-nos um verbo para todos os dias do ano. E esse verbo é nascer. Um acontecimento que normalmente colocamos no princípio da vida e do qual pensamos que ocorre uma única vez. Ora, o Natal entrega-nos o verbo nascer como um programa de vida, um mapa sempre em aberto, sempre a ser refeito. O menino que o Natal celebra diz a cada um: “Agora nasce tu.”

[SEMANÁRIO#2617 - 23/12/22]

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