Eu sei, a afirmação em título é ousada, mas pode levar alguém, igual, a tomar o fármaco que o safe dessa coisa. Sem diagnóstico individualizado, vou medicar com um genérico, o texto desta semana. No entanto, talvez possa, também ele, provocar alguma acidez em alguns leitores, é verdade, mas não é por mal. A provocação pode ser útil e boa, pode fazer desaparecer o mal, evitando tomar Rennie ou Kompensan. Se, mesmo assim, deixar alguém com a gana de me torcer o pescoço, paciência! Mas acho que qualquer pescoço não merece o esforço de uma torcedura assim tão solene e carinhosa. Então, conversemos como amigos sem que algum se queira apresentar como exemplar. A amizade sincera fala com sinceridade, ajuda a refletir no respeito pelas diferenças, escutando e falando. Também a amizade com Jesus nos leva a propalar o que Ele disse e fez e a esclarecer porque é que o fez e disse.
Quando Jesus falava das exigências de ser seu discípulo, causou muita mossa em alguns ouvintes, acharam duro, voltaram as costas, saíram a rezingar. A partir daí, “muitos dos seus discípulos voltaram para trás e já não andavam com Ele” (Jo 6, 66). Voltar para trás nem sempre é bom! Deixar de andar com Ele muito menos! Ouvimos muitas vezes alguém dizer-se católico não praticante. Não estou a dizer que quem o diz esteja mesmo a voltar para trás ou a deixar de andar com Ele. Mas é uma espécie de ‘trunfo’ que se ripa do baralho embaralhado e se bate com estrondo sobre a mesa para que todos fiquem a saber que quem o puxa e bate é que sabe jogar no jogo da vida. Com total respeito pela liberdade e pelo à-vontade com que as pessoas usam esse ‘trunfo’ de afirmação a manifestar uma certa clarividência pessoal nunca vista, custa-me acreditar – e perdoem-me esta dúvida nada cartesiana -, custa-me acreditar que estas pessoas se sintam confortáveis nessa cama em que se deitam. É certo que, nesta matéria, não é saudável agir por obediência infantilizada ou porque alguém, sem mais, quis impingir as suas certezas. A força da minha dúvida, porém, não se me coloca aí. Coloca-se, isso sim, a nível daquela gentileza pessoal que nasce do saber que amor com amor se paga. Corresponder ao amor de Deus por cada um de nós tem as suas exigências, em liberdade para fazer o que devo, em verdade porque só a verdade nos libertará, em querer o bem e praticá-lo, mesmo que acarrete dor e sacrifícios. Quem ama sofre! Deus que nos ama, sofreu por nós na cruz, dando a vida. Mas será que, de facto, bastará o relacionamento intimista de cada um com Deus, submetendo, sem mais, a religião ao seu modo de pensar, ao seu conforto e satisfação pessoal? Eis o busílis! Desde os primórdios da humanidade que toda a cultura e civilização teve um sistema religioso, mais simples ou mais complexo, a falar desta relação do homem com o sobrenatural. Um conjunto de princípios, valores, crenças, símbolos e práticas religiosas a saber e a cumprir, aceites por um mero sentimento religioso ou pela fé mais ou menos esclarecida, dando sentido à vida e unindo quem os segue. No nosso caso, sendo embora uma religião do Livro com os seus valores e doutrina, o Cristianismo é Cristo. Toda a História da Salvação converge para Ele. Ser seu discípulo é pegar na cruz de cada dia e segui-lo, sabendo e praticando o que devemos praticar e saber. Ser cristão implica ser praticante. Isto não quer dizer que tudo o que os cristãos e Igreja Católica faz esteja a ser bem feito. Há muita coisa que depende de quem o faz e das suas circunstâncias, mesmo que haja o dever de o fazer com qualidade. Tampouco quer dizer que quem é cristão seja perfeito, saiba tudo, não tenha dúvidas, só tenha de ensinar e nada tenha a aprender. Pelo contrário, o cristão tem consciência da sua fragilidade. A prática religiosa, porém, ajuda-o a crescer, a esclarecer dúvidas, a buscar a perfeição, a obter maior conhecimento de Deus e da sua Igreja, a ir corrigindo o que está mal, a agir na caridade, com humildade, em comunhão, colaborando com os outros. Dizer-se ‘católico não praticante’ pode significar que a pessoa, embora simpatize com o cristianismo, ainda está num processo dinâmico de conversão, sim, pode significar isso. Mas também pode dizer que a pessoa se fechou em si, criou as suas próprias verdades de acordo com o seu estilo de vida, talvez cómodo, talvez light, talvez descafeinado, transformando o absoluto em relativo e esquecendo a religião na qual Deus se revela, endeusando-se e glorificando-se a si próprio.
Dentre muitos exemplos possíveis, repetimos o mais comum: imaginem que um futebolista de gabarito foi selecionado para fazer parte da equipa dum jogo a disputar. Aceita o desafio, veste o equipamento, entra para o relvado e perfila-se na fotografia da praxe. O árbitro dá o apito inicial, e, agora, o dito cujo, senta-se ao lado do retângulo decidindo que hoje vai ser um jogador não praticante! Para além do mal exemplo, do ridículo que seria e da falta de solidariedade com os colegas de equipa, estamos a adivinhar que, da parte dos aficionados, logo saltariam montanhas de insultos, gritos, vosearia e bem sabemos mais o quê...
Uma equipa é um todo, um corpo treinado por alguém e onde cada um que se prese não deve fazer o que entende nem esquecer o todo da equipa. Tem de haver ‘obediência’, uma espécie de amor filial ao treinador, solidariedade no grupo e com a estrutura. Todos, com alegria e entusiasmo, devem sentir-se no dever de dar o seu melhor para que o jogo tenha arte e beleza e se atinja o resultado desejado. A Igreja é um corpo, nela cada um tem uma função a desempenhar para que ela seja bela e sempre jovem, atingindo os fins para que existe. Todos são selecionados, todos jogam, não há suplentes, todos são importantes. A Igreja existe para evangelizar! A evangelização faz-se pela palavra e pelo testemunho, pela alegria e coerência com que se vive e fala. Só assim se poderá gerar aquela empatia que convida, provoca, interpela, evangeliza e converte. Não se harmoniza com espiritualidades privadas, subjetivas, ao sabor dos gostos e consumos pessoais, relativizando a ‘tradição’ e a própria instituição, peneirando o Evangelho para selecionar apenas o que não faz mexer a pessoa da sua zona de conforto. Deus não é uma espécie de bombeiro a cuja porta só se bate quando a casa está a arder ou a vida corre mal. Em princípio, ser cristão é ser praticante, não por obrigação ou porque a lei manda, isso seria muito pobre. Mas por exigência interior e pela necessidade de o testemunhar a quem amamos, a começar por casa. O cristão não vai à Igreja como quem vai ao mercado quando precisa de algo. A Igreja não é qualquer coisa que está fora dele. Ele é Igreja, celebra como Igreja e com a Igreja. A evangelização precisa do entusiasmo, da colaboração e das achegas de todos em ordem à coerência e à perfeição de todos. O Senhor não se acomodou, não desistiu em momentos de prova, não desceu da cruz para agradar a quem o desafiava, amou-nos até ao fim, confiou em nós, enviou-nos em seu nome, como amigos. Amor com amor se paga.
D. Antonino Dias- Bispo Diocesano
Portalegre-Castelo Branco, 02-12-2022.
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