sexta-feira, 9 de dezembro de 2022
A substância das coisas esperadas, por Tolentino Mendonça
O que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar?” A verdade é que as três emblemáticas perguntas em torno às quais Kant articulou o seu pensamento como que se infiltram na vida comum e, de uma forma ou de outra, se acendem também dentro de nós, aguardando, até mais do que uma resposta taxativa, um aprofundamento, uma maturação e um caminho. Cada uma dessas perguntas constitui um ponto de partida para uma longuíssima, indeclinável e aberta viagem humana que nos compete. E que se concretiza, efetivamente, num trabalho de natureza racional como Kant propõe, mas não de modo exclusivo, pois depressa descobrimos que é a vida toda, nas suas plurais dimensões, que nos implica nessa tarefa. Claro que a racionalidade e o plano filosófico aguçam as perguntas, mas, como ensina Shakespeare, há mais coisas entre o céu e a terra do que aquelas que se pode imaginar simplesmente através da filosofia. A nossa existência quotidiana documenta essa excedência.
Podemos não nos dar bem conta, mas aquelas perguntas estão sempre latentes. Formulámo-las por outras palavras ou de maneira implícita, transportamo-las connosco quando, por exemplo, nos confrontamos com aquilo para o qual não temos resposta, e que tanto pode ser o drama como o êxtase que o nosso estar sobre o mundo comporta. A imposição dramática do limite, a experiência da doença, as morfologias diversas com que a granada da dor nos estilhaça fazem-nos seguramente regressar, de forma crua, àquelas interrogações. Mas da mesma maneira o êxtase: a visão de um rosto amado; o sabor indizível de certas horas ainda vivo na nossa memória; uma folha que ao acaso nos pousa na mão sem que percebamos imediatamente o que em silêncio nos segreda; a repentina vastidão de que nos tornamos conscientes olhando (como as crianças olham), de repente, o céu.
Um símbolo não deveria ficar sequestrado pela mera estética do ornamento, um ilusório expediente mudo. Deveria poder avizinhar-nos com a sua força nua a alguma coisa de essencial para nós
Sem dúvida que podem ser atordoantes as perguntas, em particular aquela que nos devolve a questão sobre a qualidade da nossa esperança. “O que me é permitido esperar?” é uma pergunta árdua, que nos põe facilmente em embaraço, a engolir em seco. E, contudo, ela está disseminada por todo o lado. Se as outras duas, “O que posso saber?” e “O que devo fazer?” em grande medida nos centram no presente, a interrogação sobre o que esperar recorda-nos que somos seres de fronteira, projetamo-nos, transcendemo-nos, não nos sentimos completamente localizados aqui, farejamos um futuro. Lutamos como Jacob com um não sei quê e dessa luta saímos a coxear. Por fim, é isso que todos somos: manquejantes, inacabados, todos esboços de uma perfeição por vir, pois dependemos da substância das coisas esperadas.
Agora que a contagem decrescente para o Natal começou, e voltamos a procurar nas caixas da dispensa os símbolos natalícios que ornamentam as nossas casas, é importante perguntarmo-nos o que nos é permitido esperar. Um símbolo não deveria ficar sequestrado pela mera estética do ornamento, não deveria ser um ilusório expediente mudo, mas deveria poder avizinhar-nos com a sua força nua a alguma coisa de essencial para nós próprios. E, desse modo, ajudar-nos a refletir sobre o horizonte, o alcance, a potência e a natureza da nossa esperança; sobre as formas da sua objetiva configuração; sobre se estamos disponíveis ou não para nos tornarmos seus cúmplices. Seus enamorados. Seus servidores. O tempo do Advento que estamos a viver é isso que expõe. Felizes aquelas e aqueles que se colocam perguntas, atravessando o espaço dos dias de coração desperto: essas e esses saberão que o Natal ilumina a sua sede.
[SEMANÁRIO#2614 - 2/12/22]
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