A morte mata-nos, é incontestável! Não descansa nem se cansa. Anda por aí, em pezinhos de lã, num frenesim medonho, de noite e de dia, de lugar em lugar, sem taleiga nem cajado, chova ou faça sol. Tem uma agenda enormemente encriptada. Não desiste do alvo, não admite contraditório, não escuta o blablá dos opositores. É oportunista e corrupta, abusa do seu poder, faz uns jeitinhos a quem está do seu lado. Estimula a vingança agasalhada no coração dos ofendidos. Favorece os mesquinhos interesses dos que chafurdam as botas na lama das guerras. Empurra quem se coloca nos arriscados cocurutos da vida. Anima piratas criminosos, salteadores de maus fígados, malfeitores sem escrúpulos, quadrilheiros rancorosos. Faz sofrer quem ama a vida e gosta de ser e viver. Com as suas destrezas de eleger quem quer que seja onde quer que for, faz correr lágrimas cara abaixo dos que sofrem o adeus de familiares e amigos. Apenas contentará – se contenta! -, os sempre prontos e diligentes coveiros, pois sem trabalho não há emprego.
São Francisco de Assis chamava-lhe irmã: a irmã morte. Às vezes apetece-me aplaudir. Às vezes apetece-me dizer que ele não fechava bem a gaveta. Às vezes dou comigo a pensar que o medo da morte é tanto maior quanto mais se desvaloriza a vida e se entra por veredas foscas e becos sem saída. Às vezes apresso-me a gritar ao meu eu sonolento, que só o amor vence a morte, que só o amor sabe experimentar a graça e a misericórdia, que só o amor faz passar do crer e saber ao viver e testemunhar. E o tempo para isso é bem limitado. Quando menos se pensa, de qualquer lugar e circunstância, a morte chama-nos ao quadro, para terminar o exercício da vida e mostrar os deveres de casa. De nada vale esconder-se por detrás dos outros, em jeito de chico-esperto, na esperança de que ela passe a chamar outro.
A par, constata-se que, ao longo da história, sempre os vivos cuidaram dos seus mortos. Há ritos próprios, conforme o contexto histórico, cultural e religioso. No mais íntimo do ser humano, há uma pitadinha, uma faísca, um pressentimento de que os mortos ‘não morrem’, sobrevivem. É um sentimento inscrito no coração do homem criado por Deus e para Deus. Esse gérmen de eternidade adoça as lágrimas, gera conforto, anima a esperança. O homem de Neanderthal já se preocupava com os seus mortos. E todos os espiões e coca-bichinhos do saber, historiadores, sociólogos, biólogos, filósofos, antropólogos, psicólogos, teólogos e cultores doutras ciências sempre enxergam, nesta temática, mais do que pano para mangas. E bem, que se desunhem se tiverem por onde, que Deus os ajude!
Porque ninguém veio dizer como foi o seu morrer, enquanto por cá se anda, sempre se fazem conjeturas. Uns resignam-se, com muitas dúvidas, claro. Outros, querendo mostrar-se superiores, entendem que nascemos por acaso e, depois, é como se nunca tivéssemos existido. Outros, seja lá como for o depois, desejam a morte, em busca dum presumível conforto que nunca tiveram na vida. Outros estão-se borrifando para ela, acham que serão sempre jovens e saudáveis e que a ciência lhe baterá firmemente o pé para que tenha calma e juízo. Outros vivem intrigados, na crença de que seria um desperdício haver um universo tão complexo e majestoso se apenas fosse para inglês ver e ninguém usufruir, até porque os ingleses também morrem! Outros, sobretudo pela fé, sempre tiveram em conta o depois da morte. A fé, de facto, faz ver aquilo que não se vê nem a ciência consegue mostrar.
A ressurreição dos mortos foi sendo revelada por Deus ao longo dos tempos, não é fruto da inteligência humana nem de filosofias baratas ou do que quer que seja. O próprio Jesus não deixa de a ensinar, com firmeza, e apresenta-se como sendo “a Ressurreição e a Vida” (Jo 11,25). Aos saduceus que a negavam, disse-lhes: “Não andareis vós enganados, ignorando as Escrituras e o poder de Deus?” (Mc 12,24). Se Jesus a ensinava, a sua Ressurreição, porém, deu sentido a tudo quanto os homens até aí podiam imaginar sobre esse grande mistério, mesmo que continuemos curiosos sobre como será o para além dela. Esse é o segredo de Deus, que não é um Deus de mortos, mas de vivos, a quem o próprio Jesus, cravado na cruz, entregou a sua vida: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). Jesus sofreu a morte própria da condição humana, sentiu repugnância perante ela, mas assumiu-a num gesto de total e livre adesão à vontade do Pai e de solidariedade connosco. E a vontade do Pai é “que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade”. E não há outro nome sobre a face da terra pelo qual possamos ser salvos, senão Jesus Cristo, o único mediador entre Deus e os homens que se entregou para salvar a todos (cf. 1Tim 2, 4-5). Já no alto da Cruz, Ele nos deixou palavras de esperança. “Jesus, lembra-te de mim quando vieres no teu reino”, pediu-lhe um dos crucificados a seu lado. E Jesus respondeu-lhe: “Eu te garanto, hoje mesmo estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 42-43). E na aurora daquele primeiro dia da semana, Jesus ressuscitou com o seu próprio Corpo: “Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo” (Lc 24, 39). Mas não regressou a uma nova vida terrena, ressuscitou glorioso. Como Ele ressuscitou, também nós, por Ele, havemos de ressuscitar (cf. 1Cor 6, 14). E nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem o coração percebeu, nem a mente humana é capaz de imaginar o que Deus tem preparado para aqueles que o amam (cf. 1Cor 2, 9).
Associemo-nos com alegria à Solenidade de Todos os Santos e à Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos. Que as flores a oferecer por eles seja aquela oração que leva à conversão da nossa mente e do nosso coração. Se amamos os mais novos e queremos o bem deles, transmitamos-lhes esses valores, evangelizando, valorizando a vida e o viver. Ajudemos a evitar uma sociedade egoísta, indiferente, desumana, triste!
Pelo Batismo, o cristão já ‘morreu e ressuscitou com Cristo’ sacramentalmente. Já vive uma vida nova, em Igreja, alimentada pela Eucaristia, pela Palavra, pela oração. Morrendo na graça de Cristo, a morte física consuma este ‘morrer com Cristo’. Se com Ele morremos, com Ele viveremos (cf. 2Tm 1,11). Vigiai e orai, porque não sabeis o dia nem a hora (cf. Mt 25, 13). Depois de Cristo, a ‘irmã morte’ é cristã, foi vencida, é passagem necessária da vida para a Vida, é lucro. Com a morte, a vida não acaba, apenas se transforma.
D. Antonino Dias - Bispo Diocesano
Portalegre-Castelo Branco, 27-10-2023.
Portalegre-Castelo Branco, 27-10-2023.
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