Mas olhem que acordei mesmo sobressaltado. Ao princípio, interroguei-me do que é que se trataria, tal era o aparato festivo. Mas tudo indicava ser uma festa dum batismo, e era mesmo, dum batismo aprincesado! Sonhei que havia convidados, muitos convidados, todos eles mui bem aperaltados e catitas. Os buriladores da moda capricharam com zelo e mestria. Os homens, enfardelados em marcas registadas e nos conformes, puxavam aquela atenção de boca aberta de quem os via passar. As senhoras, nada de trapinhos de trazer lá por casa, requintavam Dior, Prada ou Valentino...
Esta requalificação humana tão bem cinzelada, tão apurada quão demorada, não deixou cumprir os horários de chegar à igreja. Paciência, há tempo! O que é que isso importa, se fazer esperar sempre foi uma prerrogativa do poder e de quem se julga superior!? A festa era deles, pois então. E até que enfim, lá chega o aguardado cortejo, com toda a pompa e circunstância, mesmo que sem grande pressa. Naquele espaço ajardinado ao redor da igreja, mais uma e outra fotografia ritmavam o andamento do cortejo!...
O Pároco, depois de ter esperado, pacientemente, mais de hora e meia por toda aquela elegância, aproximou-se, sorridente. Cumprimentou a todos, delicadamente e de boa cara, mas de vísceras amordaçadas com o vinagre da indelicadeza sem qualquer pedido de desculpas. Qualquer Padre nunca tem razão perante quem se julga importante, superior e sem deveres.
As coisas lá se foram desenrolando conforme Deus e a criança foram servidos. E eis senão quando, a madrinha saca da sua bolsa de mão, bolsa de pele, uma vela encetada. Talvez já tivesse ardido sonolenta aos pés de Santa Bárbara, quando o trovão rolou, fez estremecer a casa e agitou os movimentos peristálticos da senhora, comentou alguém lá para o lado. Todos entenderam, desculpando, que a tarefa dos preparativos pessoais não deixou tempo para preparar a festa do homenageado. Além disso, uma vela é uma vela, e a criança nem repara nisso, casquinou um outro mais desempoeirado!
Mais depois, uma idosa senhora puxa de uma fieirinha de ouro branco para colocar no pulso da criança, após ser batizada. A fieira pendurava uma figa, uma ferradura, um chifre, e mais qualquer coisa dessa tralha... pois, não fosse o diabo tecê-las, pensaria ela. Para a madrinha, melhor seria ficar de bem com os dois, com Deus e o diabo, eles lá que se entendessem e deixassem a criança crescer escorreita e sem maleitas!
Não sei como teria decorrido o opíparo banquete. Se foi de caviar com maranho, tigelada e sericaia com ameixa de Elvas, se de cabrito estonado, com farófias e queijo fresco a finalizar. O que sonhei é que, se para o banquete tudo e todos davam sinais de estarem bem preparados, ninguém se preparou para participar na celebração do Batismo da criança. E era a criança o centro da festa! E era a criança que, no seu silêncio, reclamava mais diligência e atenção, mais testemunho dos seus familiares e convidados, centralizando a festa no essencial, vivendo-a de forma dignamente cristã. Mas, concluí, a sonhar, que foi tudo menos isso. Nem pais, nem irmãos, nem padrinhos, nem convidados, nem um sequer foi à comunhão ou manifestava jeito de saber estar e viver o momento. Ninguém respondia ao diálogo celebrativo. Não sei se alguém estava atento ao que se passava, tal era a preocupação dos figurantes consigo próprios, tal era a preocupação da pose para o fotógrafo!
Mas, dando mais uma volta ao sono, logo sonhei que, se isso acontecia num batizado, o que seria nos casamentos, quando se gerou o costume de, antes da celebração na igreja, se passar pela casa do noivo e da noiva para escorrichar uns largos copos e engarfar um substrato à medida.
Acordei mesmo sobressaltado. Há celebrações que são mesmo difíceis de digerir, mesmo sonhando!...
D. Antonino Dias - Bispo Diocesano
Portalegre-Castelo Branco, 14-06-2024.
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