domingo, 5 de janeiro de 2014

Caixa dos brinquedos

Bem-aventuradas as famílias que não deitam fora a caixa dos brinquedos



Acontece, por vezes, que, à medida que os filhos crescem, desaparece das famílias a caixa dos brinquedos. As casas tornam-se (um pouco) mais ordenadas, aderem a uma rotina perfeita que durante anos não tiveram, numa respeitabilidade estável, segura de si. Principia-se então uma estação de tréguas, sem as surpresas que desesperavam: a chuva de peças órfãs dos seus jogos, os bonecos a ressurgirem onde absolutamente não deviam, o inofensivo módulo encontrado pelo canalizador como única explicação para a monumental avaria. Primeiro respira-se de alívio, portanto. Mas depois, estranhamente, nem tanto. Pois há uma hora em que se percebe a falta que nos faz a caixa dos brinquedos.

É nessa caixa que se encontram os símbolos, as brincadeiras, os risos distendidos, as férias em família, os aniversários, os jogos intermináveis à volta da mesa com velhos e novos contagiados pelo mesmo entusiasmo, a contemplação carinhosa sem nenhuma finalidade. É nessa caixa que estão as histórias disparatadas e sábias que contamos pela vida fora, aí se conservam os odores, os registos, as palavras de uma canção que cantámos muitas vezes e depois esquecemos, a primeira bicicleta, os livros que nos ofereceram quando ainda não sabíamos ler, os cromos, o silêncio da intimidade, a viagem à aldeia, as conversas à janela voltados para a noite. Nessa caixa está a arte de fazer tempo, de perdê-lo para que se torne mais nosso, permitindo a imaginação, o sentido lúdico, a alegria. A caixa dos brinquedos não serve para nada, e por isso dá-nos razões para viver.

Não nos damos conta do empobrecimento que representa, mas muitos dos conflitos dolorosos que transportamos mais tarde, vida fora, têm aí a sua origem. Lembro-me de uma história que uma querida amiga me contou. O seu pai era juiz em Itália. Um homem severo e absorto, sem tempo a desperdiçar, sem grande vontade de levantar os olhos do seu importante mundo, ainda menos para escutar as minudências por que passavam os miúdos. Ela cresceu, formou--se e, durante os primeiros anos, chegou a trabalhar como secretária do pai. Essa proximidade em nada alterou o quadro que conhecia: continuavam dois estranhos, com uma relação puramente formal, e um mundo submerso de coisas por dizer. Ela conta que um dia fizeram uma viagem de trabalho a uma das ilhas gregas. Foram de barco, e podemos imaginar os longos tempos de travessia. De madrugada, porém, sobressaltada, ela percebe que o pai está no seu camarote, a acordá-la. Fixa-o sem perceber bem o que se está a passar. E ele diz-lhe: «Vem ver o sol que está a nascer. É enorme, enorme. Vem depressa. Vais gostar. Vem». Muitos anos depois, o pai já tinha morrido, esta história tinha-se passado há décadas, a minha amiga confiava--me: «Se ele tivesse feito pelo menos mais uma coisa destas, pelo menos mais uma, eu ter-lhe-ia perdoado tudo».

José Tolentino Mendonça
Pontifícia Universidade Católica-Minas, Belo Horizonte, Brasil,

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