quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Hospitalidade

Bem-aventuradas as famílias que entendem a sua missão como uma arte de hospitalidade


O amor é uma forma incondicional de hospitalidade. Na família experimentámos humildemente que não somos donos de nada nem de ninguém: somos testemunhas, elos de uma corrente, companheiros. Acolhemo-nos na gratuitidade e só aí. Bem-aventurada a família que não tem a reivindicação de posse que, muitas vezes, é a do amor exageradamente narcísico. Os seus laços são os de uma intimidade que se pode experimentar, mas não dominar; que se pode escutar profundamente, mas sem deter. A ansiedade de dominar é um equívoco. A companhia é outra coisa: é aceitar que somos uns para os outros passagem, epifania, revelação que, na prática do amor, se aprofunda e fortalece. Aceitar, aceitar - que exercício tão difícil, mas absolutamente decisivo para a edificação da família. Aceitar a noite e o nada, o silêncio e a demora, aceitar a graça e fraqueza, a diferenciação e o desapego. E de tudo fazer caminho, na esperança, sem nunca desistir de ninguém.

Tomemos uma imagem que nos é oferecida por um autor contemporâneo, Luciano De Crescenzo: «Somos anjos de uma asa só. Temos de permanecer abraçados para poder voar». Nesta sugestiva imagem há dois princípios que sobressaem: o princípio da incompletude, cada um de nós possui uma asa apenas; e o princípio da comunhão, que garante que abraçados podemos voar. O que é a experiência de uma família? É a maturada e criativa conjugação destes dois princípios. Com cada homem e cada mulher vem ao mundo algo de novo que nunca antes existiu, algo de inaugural, mas é na construção da reciprocidade que de forma consistente o podemos descobrir. O “eu” tem imperiosa necessidade de ser olhado amorosamente por um outro, de ser acolhido para aventurar-se no risco de ser. Para haver um “eu” tem de existir um “tu”. A vida não se resolve isoladamente. Sozinhos, ficamos inclusive aquém de nós próprios, pois cada um de nós constrói-se no encontro e na relação. Precisamos desse reconhecimento mútuo: um reconhecimento não fundado no confronto ou na competição, mas na gratuitidade e no afecto.

Do princípio da incompletude transitamos assim, muito naturalmente, para o princípio da comunhão: «abraçados podemos voar». A comunhão supõe certamente decisão, esforço e caminho. Porém, não é propriamente de uma conquista que se trata, mas do espanto inesgotável e comum, da abertura, da dádiva, da radical hospitalidade que um oferece ao outro. Isso que surge de forma tão clara nos versos seguintes de Rainer Maria Rilke: «Se me tapares os olhos: ainda poderei ver-te./ Se me tapares os ouvidos: ainda poderei ouvir-te./ E mesmo sem pés poderei ir para ti./ E mesmo sem boca poderei invocar-te». O fundamental concretiza-se numa gratuitidade infatigável, numa geografia sem condições nem reservas. O amor não se explica: implica-se. Acontece sem porquês. É uma voluntária hipoteca, um sigilo de sangue, um entrelaçamento vital. Apenas apreende o amor aquele que sabe, por experiência, o que significa amar. Os que se amam tornam-se cúmplices. E cúmplices não apenas uns dos outros. Tornam-se cúmplices de Deus.


José Tolentino Mendonça
Pontifícia Universidade Católica-Minas, Belo Horizonte, Brasil,

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