sábado, 4 de janeiro de 2014

Arte da Lentidão



Bem-aventuradas as famílias que cultivam uma arte da lentidão

Talvez precisemos voltar a essa arte tão humana que é a lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes; os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados. À conta disso, os ritmos de actividade tornam-se impiedosamente inaturais. Cada projecto que nos propõem é sempre mais absorvente e tem a ambição de sobrepor-se a tudo. Os horários avançam impondo um recuo da esfera privada. E mesmo estando aí é necessário permanecer contactável e disponível a qualquer momento. Passamos a viver num “open space”, sem paredes nem margens, sem dias diferentes dos outros, sem rituais reconfiguradores, num contínuo obsidiante, controlado ao minuto. Damos por nós ofegantes, fazendo por fazer, atropelados por agendas e jornadas sucessivas em que nos fazem sentir que já amanhecemos atrasados. Deveríamos, contudo, reflectir sobre o que perdemos, sobre o que vai ficando para trás, submerso ou em surdina, sobre o que deixamos de saber quando permitimos que a aceleração nos condicione deste modo. Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chegamos a aprofundar. Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efémero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver.

Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e o uno. Lembro-me de uma história engraçada que ouvi contar à pintora Lourdes Castro. Quando em certos dias o telefone tocava repetidamente, e os prazos apertavam e tudo, de repente, pedia uma velocidade maior do que aquela que é sensato dar, ela e o Manuel Zimbro, seu marido, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pelo espaço da casa. E divergindo dessa forma com a aceleração, riam-se, ganhavam tempo e distanciamento crítico, buscavam outros modos, voltavam a sentir-se próximos, refaziam-se.


José Tolentino Mendonça
Pontifícia Universidade Católica-Minas, Belo Horizonte, Brasil,

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