sexta-feira, 12 de abril de 2024

Dar está fora de moda


A verdade é que estamos tão distorcidos pelas regras do mercado que já não sabemos receber. Desconfiamos.

Nos tempos ultramercantis que correm, em que tudo se compra e vende, oferecer é cada vez mais raro. A própria palavra "oferecer" já soa mal. A ideia é que ninguém dá nada, que tudo traz água no bico, e que os almoços de graça são aqueles que acabam por sair mais caros.

Mais raro ainda do que saber dar — dar sem esperar nada em troca — é saber receber. Será que nos esquecemos de como reagir a uma dádiva?

Por razões domésticas desinteressantes, vi-me a braços com uma abundância de miolo de amêndoa e de nêsperas. Dividi tudo em saquinhos de papel e desatei a tentar distribuí-los por toda a gente com que me encontrava.

Já desconfiava que as pessoas não queriam as nêsperas — sabe Deus porquê — e, para escoá-las, pensei exigir que recebessem um quilo de nêsperas por cada 250 gramas de amêndoas. Mas nunca imaginei que também não quisessem as amêndoas.

A verdade é que estamos tão distorcidos pelas regras do mercado que já não sabemos receber.

Desconfiamos. Reagimos como se nos estivessem a propor um contrato. Aliás, como se estivéssemos a contrair um empréstimo: aquelas inocentes amêndoas reapareceriam no Verão, invocadas com dureza bíblica: "Então, não me dás uns pêssegos? Ou já te esqueceste das amêndoas que me impingiste?"

Mas também aprendi que saber receber é uma arte. Ao contrário de todos aqueles que reagiram como se eu lhes estivesse a cravar frutas preciosas, houve quem fingisse que tinha sido surpreendido por uma festa. "Para mim? Quanto é que tenho de pagar? Nada?! Mas não pode ser! São nêsperas tão bonitas!"

É uma verdade muito antiga que uma pessoa se sente bem quando dá. Há um lado útil — de não deixar estragar as coisas —, mas também há um lado quentinho, que vem de dar prazer a outra pessoa.

Será que é por isso que as pessoas hesitam tanto em receber uma oferta? Para não dar ao dador a satisfação que daí resulta? Cheira-me que vou ter de começar a pagar a quem se digne receber as minhas oferendas.


Miguel Esteves Cardoso

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